Últimas Conversas
Em diversos sentidos, Últimas Conversas é um filme melancólico. Coutinho não parecia feliz fazendo-o e mal sabia que este seria seu último filme. Mas, ainda assim, a alma do documentarista que sempre deu voz à pessoa comum nos traz aqui momentos sublimes de invasão e busca pela compreensão da alma adolescente.
Assassinado pelo próprio filho no início de 2014, o principal documentarista brasileiro teve sua despedida das telas finalizada pelo diretor João Moreira Salles com o apoio da montadora Jordana Berg. Provavelmente, não é o filme que veríamos se Coutinho estivesse vivo, ainda que durante as filmagens ele já fosse fazendo marcações e estivesse trabalhando no primeiro corte quando nos deixou. Ele próprio aparece mais do que de costume em tela, ainda que sua voz conduzindo as conversas já tenha se transformado em uma de suas marcas autorais.
O início do filme é com o próprio diretor em frente a tela, sentado na cadeira do entrevistado reclamando sobre o material que tem em mãos. "Devia ter feito com crianças", ele lamenta. "Elas são mais verdadeiras, os jovens já chegam aqui armados". Ele completa, o que uma voz feminina retruca dizendo que aí entra a missão dele: desarmá-los.
Desde Jogo de Cena, Coutinho vem trabalhado os limites da ficção e do documentário, sempre com a tese de que ao ligar uma câmera a realidade se transforma. Últimas Conversas também tem muito disso. Tanto que ele sempre diz ao jovem entrevistado que ele pode mentir, não importa, porque verdade mesmo não sabe se existe. O diretor explica ao jovem que apenas lhe faria perguntas aleatórias sobre a vida dele e começa a conversar.
A maioria das entrevistadas são meninas, apenas dois rapazes aparecem no corte final. E todos os jovens estão no terceiro ano colegial, prestando ENEM para decidir a carreira que irão seguir. Mas, não falam apenas sobre isso. Falam sobre amores, dificuldades de relacionamentos familiares, amigos, bullying, medos, traumas, talentos e sonhos. É interessante a forma como Coutinho vai conduzindo a conversa como um psicólogo paciente, contratando com a imagem do documentarista que reclama no início.
Cada um tem sua própria história e sua forma de lidar com a vida. E a câmera está sempre ali, aproximando a medida que a conversa se torna mais íntima, se afastando nos momentos de constrangimento. Alguns parecem bem à vontade em frente à câmera, outros são mais arredios. Os momentos de silêncio também viram experiência e um jovem diz: "esse silêncio ficou estranho, porque o ouvido humano não está preparado para o silêncio total".
Pelo fato da maioria dos entrevistados serem de escola pública e afrodescendentes, há também a discussão sobre as cotas. Dois entrevistados dizem que usarão o direito que lhes cabe, enquanto que outra entrevistada diz que acha que isso é uma forma de racismo tanto de quem criou quanto de quem utiliza desse recurso: "tenho total capacidade de concorrer a uma vaga com um branco, sem precisar de cota".
Coutinho consegue revelações diversas como a menina que chora pela insinuação de abuso sexual sofrida, ou o rapaz que conta o drama que o fez largar a escola e retornar após muita terapia. Há críticas sociais também, como a garota que fala das aulas extras que existem na escola pública como ballet e artes marciais, mas questiona "Cadê a aula de inglês e informática para nos preparar para o mundo?"
De maneira simples, como sempre, o diretor vai nos guiando nessas conversas que acabam nos fazendo refletir e aprender. Ouvir pessoas que provavelmente são invisíveis diante da sociedade de consumo fácil e celebridades instantâneas sempre foi seu maior dom. E que agora ficam nas imagens imortalizadas em nossas memórias e em sua vasta obra, que no final dão um indício de que ainda poderiam nos dar muito mais. Que ele consiga encontrar a paz onde quer que esteja.
"Deus é o homem que morreu" (contém spoilers)
Talvez o ponto alto de Últimas Conversas seja mesmo a subversão do tema que vem na sua parte final e que já tinha nos dado uma pista no início. Surge uma garotinha de cinco anos na tela e Coutinho conversa com ela fazendo perguntas e deixando que sua inocência infantil responda. Contrasta com tudo que vimos, até porque a garotinha é de classe alta, com dois pais médicos, uma babá e uma cozinheira. Mas, a simplicidade e espontaneidade com que responde às perguntas nos faz rir e pensar no que poderia ter sido esse filme feito apenas com crianças. E, no final, Coutinho repete incessantemente a resposta da garotinha para a pergunta do que é Deus: "Deus é o homem que morreu". Quanta ironia ver que o criador desta obra é também o homem que morreu.
Últimas Conversas (Últimas Conversas, 2015 / Brasil)
Direção: Eduardo Coutinho
Finalização: João Moreira Salles
Roteiro: Eduardo Coutinho
Duração: 80 min.
Assassinado pelo próprio filho no início de 2014, o principal documentarista brasileiro teve sua despedida das telas finalizada pelo diretor João Moreira Salles com o apoio da montadora Jordana Berg. Provavelmente, não é o filme que veríamos se Coutinho estivesse vivo, ainda que durante as filmagens ele já fosse fazendo marcações e estivesse trabalhando no primeiro corte quando nos deixou. Ele próprio aparece mais do que de costume em tela, ainda que sua voz conduzindo as conversas já tenha se transformado em uma de suas marcas autorais.
O início do filme é com o próprio diretor em frente a tela, sentado na cadeira do entrevistado reclamando sobre o material que tem em mãos. "Devia ter feito com crianças", ele lamenta. "Elas são mais verdadeiras, os jovens já chegam aqui armados". Ele completa, o que uma voz feminina retruca dizendo que aí entra a missão dele: desarmá-los.
Desde Jogo de Cena, Coutinho vem trabalhado os limites da ficção e do documentário, sempre com a tese de que ao ligar uma câmera a realidade se transforma. Últimas Conversas também tem muito disso. Tanto que ele sempre diz ao jovem entrevistado que ele pode mentir, não importa, porque verdade mesmo não sabe se existe. O diretor explica ao jovem que apenas lhe faria perguntas aleatórias sobre a vida dele e começa a conversar.
A maioria das entrevistadas são meninas, apenas dois rapazes aparecem no corte final. E todos os jovens estão no terceiro ano colegial, prestando ENEM para decidir a carreira que irão seguir. Mas, não falam apenas sobre isso. Falam sobre amores, dificuldades de relacionamentos familiares, amigos, bullying, medos, traumas, talentos e sonhos. É interessante a forma como Coutinho vai conduzindo a conversa como um psicólogo paciente, contratando com a imagem do documentarista que reclama no início.
Cada um tem sua própria história e sua forma de lidar com a vida. E a câmera está sempre ali, aproximando a medida que a conversa se torna mais íntima, se afastando nos momentos de constrangimento. Alguns parecem bem à vontade em frente à câmera, outros são mais arredios. Os momentos de silêncio também viram experiência e um jovem diz: "esse silêncio ficou estranho, porque o ouvido humano não está preparado para o silêncio total".
Pelo fato da maioria dos entrevistados serem de escola pública e afrodescendentes, há também a discussão sobre as cotas. Dois entrevistados dizem que usarão o direito que lhes cabe, enquanto que outra entrevistada diz que acha que isso é uma forma de racismo tanto de quem criou quanto de quem utiliza desse recurso: "tenho total capacidade de concorrer a uma vaga com um branco, sem precisar de cota".
Coutinho consegue revelações diversas como a menina que chora pela insinuação de abuso sexual sofrida, ou o rapaz que conta o drama que o fez largar a escola e retornar após muita terapia. Há críticas sociais também, como a garota que fala das aulas extras que existem na escola pública como ballet e artes marciais, mas questiona "Cadê a aula de inglês e informática para nos preparar para o mundo?"
De maneira simples, como sempre, o diretor vai nos guiando nessas conversas que acabam nos fazendo refletir e aprender. Ouvir pessoas que provavelmente são invisíveis diante da sociedade de consumo fácil e celebridades instantâneas sempre foi seu maior dom. E que agora ficam nas imagens imortalizadas em nossas memórias e em sua vasta obra, que no final dão um indício de que ainda poderiam nos dar muito mais. Que ele consiga encontrar a paz onde quer que esteja.
"Deus é o homem que morreu" (contém spoilers)
Talvez o ponto alto de Últimas Conversas seja mesmo a subversão do tema que vem na sua parte final e que já tinha nos dado uma pista no início. Surge uma garotinha de cinco anos na tela e Coutinho conversa com ela fazendo perguntas e deixando que sua inocência infantil responda. Contrasta com tudo que vimos, até porque a garotinha é de classe alta, com dois pais médicos, uma babá e uma cozinheira. Mas, a simplicidade e espontaneidade com que responde às perguntas nos faz rir e pensar no que poderia ter sido esse filme feito apenas com crianças. E, no final, Coutinho repete incessantemente a resposta da garotinha para a pergunta do que é Deus: "Deus é o homem que morreu". Quanta ironia ver que o criador desta obra é também o homem que morreu.
Últimas Conversas (Últimas Conversas, 2015 / Brasil)
Direção: Eduardo Coutinho
Finalização: João Moreira Salles
Roteiro: Eduardo Coutinho
Duração: 80 min.
Amanda Aouad
Crítica afiliada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), é doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Poscom / UFBA) e especialista em Cinema pela UCSal. Roteirista profissional desde 2005, é co-criadora do projeto A Guardiã, além da equipe do Núcleo Anima Bahia sendo roteirista de séries como "Turma da Harmonia", "Bill, o Touro" e "Tadinha". É ainda professora dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unifacs e da Uniceusa. Atualmente, faz parte da diretoria da Abraccine como secretária geral.
Últimas Conversas
2015-05-30T08:30:00-03:00
Amanda Aouad
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