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Parece que os textos de Nelson Rodrigues nunca ficam datados, ainda assim é sempre arriscado uma nova versão de suas peças, seja para o cinema ou para a televisão. O Beijo no Asfalto, então, que já teve um filme, trazia um misto de expectativas ainda maior. É bom perceber que Murilo Benício se sai muito bem na missão, principalmente por ser seu primeiro filme como diretor e roteirista.
Fugindo de comparações, Benício assume a metalinguagem de uma maneira bastante própria, intercalando uma mesa de leitura do texto com encenações em diversos níveis. Vemos em um momento o camarim, em outro o palco do teatro com uma plateia, em outros o cenário sendo montado e outros ainda com ilusão da imersão em cena.
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Essa escolha é extremamente feliz porque joga para dentro da tela a discussão sobre o texto, sobre o significado de Nelson Rodrigues, assim como as técnicas de atuação. Ver a gradação da imersão dos atores é outro deleite. É curioso ver Débora Falabella em sua primeira leitura, marcada, depois no ensaio no camarim e comparar com sua atuação em cena.
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E mesmo com todo esse jogo cênico aberto, revelando segredos de bastidores, é impressionante como a força da história não se perde. É possível acompanhar o drama de Arandir e a dubiedade de seu ato de beijar um moribundo, recém atropelado no meio da praça da Bandeira, cercado de pessoas. O desespero de Selminha que quer acreditar no marido, mas começa a se sentir traída é exposto de maneira satisfatória, assim como o circo armado pelo repórter sensacionalista e o policial corrupto.
As relações pessoais e familiares vão sendo conduzidas em tela e a força do elenco se destaca mesmo que possamos vê-los níveis antes disfarçados. É como se revelar o truque da mágica só a tornasse ainda mais fascinante, um convite a ser parte do jogo. A fotografia em preto e branco também ajuda a construir esse jogo cênico imersivo.
O Beijo no Asfalto acaba sendo uma experiência cinematográfica diferente. Constrói um hibrido de documentário e ficção a partir dessa metalinguagem, explicitando suas intenções e ainda assim sendo capaz de nos surpreender e fazer pensar. Sem dúvidas, um filme que instiga.
O Beijo no Asfalto (O beijo no asfalto, 2018 / Brasil)
Direção: Murilo Benício
Roteiro: Murilo Benício
Com: Débora Falabella, Lázaro Ramos, Otávio Müller, Fernanda Montenegro, Marcelo Flores, Stênio Garcia, Luiza Tiso, Augusto Madeira, Amir Haddad
Duração: 98 min.