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O Beijo no Asfalto
O Beijo no Asfalto
Parece que os textos de Nelson Rodrigues nunca ficam datados, ainda assim é sempre arriscado uma nova versão de suas peças, seja para o cinema ou para a televisão. O Beijo no Asfalto, então, que já teve um filme, trazia um misto de expectativas ainda maior. É bom perceber que Murilo Benício se sai muito bem na missão, principalmente por ser seu primeiro filme como diretor e roteirista.
Fugindo de comparações, Benício assume a metalinguagem de uma maneira bastante própria, intercalando uma mesa de leitura do texto com encenações em diversos níveis. Vemos em um momento o camarim, em outro o palco do teatro com uma plateia, em outros o cenário sendo montado e outros ainda com ilusão da imersão em cena.
A construção a partir da mesa de leitura conduzida por Amir Haddad e com ótimas ponderações de Fernanda Montenegro torna tudo ainda mais instigante. Murilo Benício está ali, mas em nada interfere na discussão. Sua voz só é ouvida quando “interpreta” um colega de Arandir, personagem de Lázaro Ramos.
Essa escolha é extremamente feliz porque joga para dentro da tela a discussão sobre o texto, sobre o significado de Nelson Rodrigues, assim como as técnicas de atuação. Ver a gradação da imersão dos atores é outro deleite. É curioso ver Débora Falabella em sua primeira leitura, marcada, depois no ensaio no camarim e comparar com sua atuação em cena.
Traz também uma atualização do texto, ainda que a encenação continua sendo de época. Os atores discutem com a visão de hoje, inclusive a questão da homossexualidade. Mesmo sem detalhes, ouvimos comentários de Fernanda Montenegro sobre um caso em específico que nos dá essa sensação de estarmos vivendo um retrocesso.
E mesmo com todo esse jogo cênico aberto, revelando segredos de bastidores, é impressionante como a força da história não se perde. É possível acompanhar o drama de Arandir e a dubiedade de seu ato de beijar um moribundo, recém atropelado no meio da praça da Bandeira, cercado de pessoas. O desespero de Selminha que quer acreditar no marido, mas começa a se sentir traída é exposto de maneira satisfatória, assim como o circo armado pelo repórter sensacionalista e o policial corrupto.
As relações pessoais e familiares vão sendo conduzidas em tela e a força do elenco se destaca mesmo que possamos vê-los níveis antes disfarçados. É como se revelar o truque da mágica só a tornasse ainda mais fascinante, um convite a ser parte do jogo. A fotografia em preto e branco também ajuda a construir esse jogo cênico imersivo.
O Beijo no Asfalto acaba sendo uma experiência cinematográfica diferente. Constrói um hibrido de documentário e ficção a partir dessa metalinguagem, explicitando suas intenções e ainda assim sendo capaz de nos surpreender e fazer pensar. Sem dúvidas, um filme que instiga.
O Beijo no Asfalto (O beijo no asfalto, 2018 / Brasil)
Direção: Murilo Benício
Roteiro: Murilo Benício
Com: Débora Falabella, Lázaro Ramos, Otávio Müller, Fernanda Montenegro, Marcelo Flores, Stênio Garcia, Luiza Tiso, Augusto Madeira, Amir Haddad
Duração: 98 min.
Amanda Aouad
Crítica afiliada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), é doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Poscom / UFBA) e especialista em Cinema pela UCSal. Roteirista profissional desde 2005, é co-criadora do projeto A Guardiã, além da equipe do Núcleo Anima Bahia sendo roteirista de séries como "Turma da Harmonia", "Bill, o Touro" e "Tadinha". É ainda professora dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unifacs e da Uniceusa. Atualmente, faz parte da diretoria da Abraccine como secretária geral.
O Beijo no Asfalto
2019-01-02T08:30:00-03:00
Amanda Aouad
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