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Malcolm X
Spike Lee é um diretor cuja filmografia sempre esteve fortemente enraizada em questões de identidade racial e justiça social e sua cinebiografia Malcolm X (1992) não poderia ser mais emblemática disso. O filme é um mergulho profundo na vida e nas contradições de um dos mais controversos líderes do movimento pelos direitos civis dos Estados Unidos. Ao lado de Martin Luther King, Malcolm X foi uma figura central na luta por igualdade racial, embora sua abordagem – muitas vezes vista como radical – até hoje continue gerando discussões. Lee, ciente dessa complexidade, não se esquivou dos pontos mais polêmicos da trajetória de Malcolm e o resultado é um filme que, com suas falhas e méritos, não tem medo de assumir riscos.
Logo de início, Malcolm X se diferencia de outras cinebiografias pela maneira como Spike Lee explora os diferentes estágios da vida do protagonista. O roteiro, baseado na autobiografia escrita por Alex Haley em colaboração com Malcolm, detalha as várias transformações pelas quais ele passou, desde sua juventude envolta no crime até sua liderança carismática dentro da Nação do Islã. Lee sabia que seria impossível capturar a magnitude de um personagem tão multifacetado em um filme de curta duração, e é justamente nesse ponto que o diretor toma sua primeira decisão ousada: abraçar o formato de épico. A Warner Bros queria um filme com, no máximo, duas horas e quinze minutos, mas Lee foi firme em sua visão e, mesmo com um orçamento apertado, conseguiu finalizar sua obra com uma duração que ele julgou ser a necessária para contar a história em sua plenitude.
É inegável que a duração do filme pode ser um problema para alguns. O ritmo mais lento do terceiro ato, quando Malcolm já está desligado da Nação do Islã e à beira de sua trágica morte, pode parecer arrastado. Embora as cenas finais sejam poderosas, especialmente a fatídica execução do líder diante de sua esposa Betty e suas filhas, a sensação de que o filme poderia ter sido mais ágil persiste. No entanto, essa extensão também permite que Spike Lee faça justiça à complexidade de Malcolm, sem transformá-lo em um mártir ou santo. Malcolm X era um homem com falhas evidentes – sua retórica inflamada e, muitas vezes, agressiva sempre foi motivo de controvérsia. Mas ele também era alguém capaz de mudar suas crenças, como demonstrado após sua peregrinação a Meca, quando passa a adotar uma postura mais conciliatória em relação à raça.
Denzel Washington, no papel-título, entrega uma performance que supera a mera imitação de Malcolm. Desde os primeiros momentos do filme, quando vemos um jovem Malcolm – então conhecido como Red – envolvido no mundo do crime e adotando aspectos da cultura branca, como alisar os cabelos, Washington captura com perfeição as diversas camadas desse homem. Ele não está apenas interpretando um ícone histórico, mas dando vida a uma pessoa real, com todas as suas contradições e ambiguidades. É essa habilidade de Washington em nos fazer ver a humanidade por trás da figura pública que torna sua atuação tão poderosa. Ele não interpreta apenas o líder eloquente que fazia discursos inflamados. Ele também mostra o jovem perdido, o prisioneiro em busca de redenção, o marido e pai preocupado. Cada fase da vida de Malcolm é interpretada com uma intensidade e um realismo impressionantes, e isso torna impossível não reconhecer o quão merecida foi sua indicação ao Oscar de Melhor Ator.
A direção de Spike Lee em Malcolm X é igualmente cheia de nuances. Lee, um cineasta que sempre soube como explorar as questões raciais de maneira direta e provocativa, constrói uma narrativa que é ao mesmo tempo intimista e grandiosa. O filme começa com uma cena visualmente poderosa: uma bandeira dos Estados Unidos queimando enquanto as imagens reais do espancamento de Rodney King, em 1991, são projetadas. É um lembrete contundente de que, embora estejamos assistindo à história de um líder dos anos 60, as questões raciais ainda são profundamente relevantes. Ao longo do filme, Lee faz uso de uma linguagem visual que mescla elementos dramáticos e estilísticos. Há momentos em que a câmera captura a tensão nas ruas, a vida no Harlem, os momentos mais íntimos de reflexão de Malcolm. E há também toques de poesia visual, como na famosa cena do "glide" – um movimento de câmera deslizante que dá a impressão de que Malcolm está flutuando, como símbolo da inevitabilidade de seu destino.
Se há um momento que encapsula o poder de Malcolm X, é o discurso "Message to the Grass Roots", que Spike Lee utiliza de maneira magistral. Enquanto Washington, no papel de Malcolm, faz seu inflamado discurso, o filme intercala suas palavras com imagens reais de repressão policial contra manifestações pacíficas e cenas da luta pelos direitos civis, incluindo o famoso discurso de Martin Luther King durante a Marcha sobre Washington. O contraste entre os dois líderes é claro: King pregava a não-violência como caminho para a liberdade, enquanto Malcolm acreditava que a defesa armada era o único meio de sobrevivência. Esse uso de imagens documentais eleva a narrativa e nos lembra que o filme não é apenas sobre a vida de um homem, mas sobre a história de um movimento.
Outro ponto forte do filme é seu elenco de apoio. Angela Bassett, como Betty Shabazz, traz uma performance discreta, mas cheia de emoção. Ela representa a força silenciosa ao lado de Malcolm, uma mulher que, apesar de viver à sombra de seu marido, desempenha um papel crucial em sua vida. Outros nomes, como Delroy Lindo e o próprio Spike Lee, contribuem para a riqueza do universo que cerca o protagonista. O filme também se destaca pelo trabalho técnico impecável. A direção de arte é cuidadosa e o figurino, criado por Ruth Carter, é uma celebração da moda das décadas de 40, 50 e 60. Esses detalhes ajudam a nos transportar para cada época específica, e cada escolha visual parece reforçar o status de Malcolm X como ícone cultural.
Se Malcolm X tem uma falha, reside na dificuldade de balancear todas as facetas da vida do líder. Ao tentar abordar tantas fases distintas da vida de Malcolm, o filme, em alguns momentos, perde coesão. Há uma sensação de que, apesar da longa duração, certas transições são apressadas, como o rompimento de Malcolm com a Nação do Islã, que poderia ter sido explorado com mais profundidade. Ainda assim, Spike Lee merece todos os méritos. Não é fácil contar a história de alguém tão complexo e fazer justiça a todas as suas facetas.
Em resumo, Malcolm X é um filme que permanece relevante e necessário. A cinebiografia de Spike Lee é uma reflexão poderosa sobre identidade, raça e mudança. Mais do que isso, é um lembrete de que, como seres humanos, somos capazes de transformação. Malcolm X foi, ao longo de sua vida, muitas pessoas diferentes, e é essa capacidade de reinvenção que torna sua história tão fascinante. Spike Lee, com sua visão destemida, e Denzel Washington, com sua atuação magistral, fizeram justiça a essa trajetória. O filme não apenas explora a vida de um homem, desafia a refletir sobre nosso próprio papel na luta pela igualdade e justiça.
Malcolm X (Malcolm X, 1992 / Estados Unidos)
Direção: Spike Lee
Roteiro: Spike Lee, Arnold Perl
Com: Al Freeman Jr, Albert Hall, Angela Bassett, Denzel Washington, Spike Lee, Delroy Lindo, Ossie Davis, Theresa Randle, Al Freeman, Christopher Plummer, Giancarlo Esposito
Duração: 182 min.
Ari Cabral
Bacharel em Publicidade e Propaganda, profissional desde 2000, especialista em tratamento de imagem e direção de arte. Com experiência também em redes sociais, edição de vídeo e animação, fez ainda um curso de crítica cinematográfica ministrado por Pablo Villaça. Cinéfilo, aprendeu a ser notívago assistindo TV de madrugada, o único espaço para filmes legendados na TV aberta.
Malcolm X
2024-11-22T08:30:00-03:00
Ari Cabral
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