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Nausicaä do Vale do Vento

Nausicaä do Vale do Vento - filme

É curioso pensar que Nausicaä do Vale do Vento, um filme que nasceu antes mesmo da fundação oficial do Estúdio Ghibli, já carregasse em si quase tudo que viria a definir a identidade desse estúdio: o traço cuidadoso, as protagonistas femininas fortes e empáticas, a desconfiança da guerra e da tecnologia, e sobretudo, o desejo de reconciliação entre o ser humano e a natureza. O que Hayao Miyazaki faz aqui — e com uma clareza surpreendente para um longa de estreia solo — é criar uma espécie de evangelho ecológico animado, onde cada criatura, planta e rajada de vento serve como metáfora para um mundo adoecido pela ganância, mas que ainda respira pelas fendas da ruína. Um ótimo filme para o Dia Mundial do Meio Ambiente.

Assisti a Nausicaä sabendo o que deveria esperar, mas, mesmo assim, o filme me pegou desprevenido. Talvez seja o fato de que, quase 40 anos depois de seu lançamento, o mundo real se parece cada vez mais com o cenário da ficção: um planeta devastado por guerras e poluição, no qual poucos acreditam que a regeneração ainda é possível. A beleza de Nausicaä, no entanto, está justamente em contrariar esse niilismo sem cair em otimismo barato. O filme é, ao mesmo tempo, duro e delicado. Ele nos dá um mundo que sangra, mas recusa-se a matá-lo.

A protagonista, Nausicaä, é um dos personagens mais complexos já criados por Miyazaki — e digo isso considerando que ele também nos deu Chihiro, Mononoke e Sophie. Mas Nausicaä não é uma adolescente em crise ou uma guerreira raivosa. Ela é uma cientista, uma princesa, uma pacifista que carrega uma espada nas costas, mas prefere não usá-la. Seu carisma não vem da agressividade nem do sarcasmo, mas da gentileza radical. Ela enxerga vida onde os outros veem ameaça. Em vez de matar os insetos gigantes que habitam o Mar da Destruição, ela tenta entendê-los. Em vez de lutar contra a natureza, ela se curva a ela, estuda seus sinais, aprende sua linguagem.

Nausicaä do Vale do Vento - filme
É aí que entra o ponto mais impressionante da direção de Miyazaki: sua habilidade em contar uma história política e filosófica através da ação, do cenário e da textura do ar. A floresta tóxica que engole o planeta não é apenas um pano de fundo — ela pulsa, exala mistério, responde. A trilha sonora de Joe Hisaishi, em sua primeira colaboração com o diretor, é minimalista e quase hipnótica. Os temas principais surgem como sopros, como se estivessem tentando não perturbar os fungos e as esporas que cobrem tudo. Esse cuidado sonoro contribui para uma imersão rara no cinema de animação: somos puxados para dentro desse ecossistema alienígena, mas que, no fundo, ecoa o nosso próprio.

A construção visual também é notável. Mesmo com as limitações técnicas da época — e de um orçamento modesto — Miyazaki e sua equipe entregam um filme visualmente coeso e cheio de camadas. A paleta de cores alterna entre tons ocres e azulados, criando um contraste simbólico entre destruição e esperança. Os Omus, seres colossais de múltiplos olhos, têm uma presença cinematográfica que rivaliza com qualquer kaiju de live-action: são ameaçadores, mas também sagrados. Um dos momentos mais marcantes do filme acontece justamente quando uma horda de Omus, movida pela raiva e pelo luto, avança sobre o vale, destruindo tudo. É nesse instante que Nausicaä, ferida e exausta, se coloca diante deles e, num gesto de entrega total, consegue interromper a fúria coletiva. A sequência tem uma força emocional ímpar. É como se a própria Terra estivesse observando em silêncio.

Nausicaä do Vale do Vento - filme
Mas Nausicaä não é um filme perfeito. Seu ritmo parece irregular, especialmente para quem está acostumado ao estilo mais redondo dos filmes posteriores do Estudio Ghibli. A segunda metade se apressa em apresentar conflitos militares que nem sempre são bem desenvolvidos — o reino de Tolmekia, por exemplo, é tratado com certa superficialidade. O filme, por vezes, sofre pela necessidade de condensar em duas horas o que Miyazaki desenvolvia com muito mais fôlego e nuance no mangá homônimo, que ele mesmo escreveu e desenhou. Isso resulta em personagens secundários pouco explorados e numa conclusão que, embora potente, carece de sutileza em algumas resoluções.

Ainda assim, esses tropeços não diminuem sua importância. Muito pelo contrário. Nausicaä do Vale do Vento é um desses filmes em que a força da ideia supera os percalços da execução. Ele não tenta ser confortável. Ele quer provocar, apontar feridas, pedir uma mudança de postura diante do mundo. E faz isso sem cair na armadilha do cinismo, oferecendo como resposta algo raro: empatia. Empatia pelos outros, pelos animais, pelas plantas, pelos seres que não entendemos e, principalmente, pelos que decidimos não ouvir.

No fim das contas, Nausicaä é uma espécie de anti-distopia. Em vez de reforçar o medo de um futuro inóspito, ele nos mostra que há vida até mesmo na podridão. Que a floresta tóxica, ao contrário do que se pensa, não é vilã, mas resultado — e talvez até cura. Um lembrete de que a natureza não está contra nós. Estamos apenas fora de sintonia.

Miyazaki, aos 43 anos, nos deu aqui sua tese mais ousada: um filme que pede menos heroísmo e mais escuta, menos armas e mais sementes. Nausicaä do Vale do Vento é mais que o começo de uma filmografia brilhante — é um chamado. E, convenhamos, num mundo que ainda insiste em repetir os erros do passado, talvez seja hora de responder a ele.


Nausicaä do Vale do Vento (Kaze no Tani no Naushika, 1984 / Japão)
Direção: Hayao Miyazaki
Roteiro: Hayao Miyazaki
Com: Sumi Shimamoto, Gorō Naya, Yōji Matsuda, Yoshiko Sakakibara, Iemasa Kayumi
Duração: 117 min.

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