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Instinto Materno
Instinto Materno
Poucos filmes conseguiram me incomodar tanto — e isso, acredite, é um elogio — quanto Instinto Materno (Pozitia Copilului, 2013), dirigido pelo romeno Călin Peter Netzer. Essa pequena bomba emocional, disfarçada de drama psicológico, vai lentamente corroendo nossas certezas sobre a maternidade, o amor, o poder e, acima de tudo, a culpa. Vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim, o filme é uma radiografia brutal, sem retoques e sem anestesia, da elite decadente da Romênia pós-comunista — mas também é um estudo íntimo e claustrofóbico sobre a toxicidade das relações familiares. Não é um filme fácil. E, por isso mesmo, é um filme necessário.
O enredo parece simples à primeira vista: Cornelia, uma mulher da alta sociedade de Bucareste, recebe a notícia de que seu único filho, Barbu, atropelou e matou um menino com o carro. A partir daí, acompanhamos sua jornada para impedir que o filho vá para a cadeia — mas o que o filme disseca, com precisão quase cirúrgica, não é apenas um crime e suas consequências legais, mas a relação doentia entre essa mãe dominadora e um filho emocionalmente paralisado.
Cornelia, interpretada com uma potência quase hipnótica por Luminita Gheorghiu, é uma das personagens mais complexas e assustadoras que o cinema recente já nos deu. Gheorghiu, que já havia brilhado em A Morte do Sr. Lazarescu (2005), entrega aqui uma atuação que beira o sublime: cada gesto, cada pausa, cada entonação revela uma mulher acostumada a manipular, a vencer pelo cansaço, a se mover nos bastidores da corrupção institucionalizada com a naturalidade de quem respira. Mas, ao mesmo tempo, sua performance jamais toca a caricatura. Cornelia é humana. Frágil. Patética, até. E é exatamente essa ambivalência que torna tudo tão perturbador.
A câmera de Netzer, sempre na mão e frequentemente tremida, cola-se aos rostos dos personagens de forma quase obsessiva, criando uma sensação constante de sufocamento. A opção estilística não é gratuita: ela traduz o ponto de vista de Cornelia, que não quer apenas controlar a narrativa do crime, mas também cada centímetro da vida de seu filho. As longas tomadas, os diálogos que se sobrepõem, o som ambiente que nunca desaparece — tudo contribui para um realismo cru, quase documental. Em alguns momentos, a câmera parece até vacilar, como se também ela estivesse desconfortável diante do que está registrando.
A direção de Netzer é segura, ainda que arriscada. A estrutura narrativa parece dispersa para quem espera uma progressão clássica, com clímax e resolução bem definidos. Mas é uma escolha coerente com a proposta do filme, já que não estamos acompanhando a resolução de um crime, mas a exposição de um sistema — social, político e familiar — que está comprometido desde a raiz. E, nesse sistema, a justiça é apenas mais uma moeda de troca.
Um dos momentos mais marcantes do filme — e talvez o mais simbólico — acontece quando Cornelia, finalmente, encontra os pais do menino morto. É uma sequência desconcertante. Não há explosões emocionais, não há grandes revelações, apenas um silêncio carregado e olhares que dizem mais do que qualquer discurso. É ali que Cornelia parece, pela primeira vez, confrontar a própria monstruosidade — ou, ao menos, a humanidade que ela passou o filme inteiro tentando recalcular. O silêncio, nesse momento, é mais ensurdecedor que todas as palavras ditas anteriormente.
Mas Instinto Materno não é um filme perfeito. O maior problema está talvez na construção do personagem Barbu, vivido por Bogdan Dumitrache. Embora o ator se esforce para transmitir a apatia e o ressentimento do filho, o roteiro não lhe dá muito espaço para evoluir. Ele é quase um satélite emocional da mãe — o que me parece uma decisão deliberada pelo contexto da trama, mas acaba enfraquecendo o impacto dramático de sua trajetória. Percebi também alguns excessos estilísticos, como movimentos de câmera abruptos e enquadramentos muito fechados, que em certos trechos cansam mais do que envolvem.
Ainda assim, nada diminui a força do conjunto. O que Netzer realiza aqui é um retrato devastador da Romênia contemporânea — um país ainda tentando entender sua identidade após a queda do regime comunista, mergulhado em um sistema de privilégios, corrupção policial e impunidade. E, ao escolher contar essa história através da lente íntima de uma mãe e um filho, o filme consegue algo raro: nos força a olhar para dentro, para as pequenas corrupções que toleramos em nome do afeto, da lealdade, do amor.
Não à toa, Instinto Materno gera tanto desconforto. Ao colocar a figura materna no centro de uma espiral de manipulação e violência simbólica, Netzer toca em um nervo exposto — e nos lembra que, às vezes, o amor mais puro pode ser também o mais destrutivo.
Para quem busca no cinema mais do que entretenimento e deseja encerrar o filme com perguntas em vez de respostas, Instinto Materno é uma experiência indispensável. Um estudo doloroso, necessário e profundamente humano sobre até onde vai o desejo de proteger e de controlar.
Instinto Materno (Pozitia Copilului, 2013 / Romênia)
Direção: Călin Peter Netzer
Roteiro: Razvan Radulescu, Călin Peter Netzer
Com: Luminita Gheorghiu, Bogdan Dumitrache, Natasa Raab, Ilinca Goia, Florin Zamfirescu, Mimi Branescu, Cerasela Iosifescu, Adrian Titieni, Vlad Ivanov
Duração: 112 min.

Ari Cabral
Bacharel em Publicidade e Propaganda, profissional desde 2000, especialista em tratamento de imagem e direção de arte. Com experiência também em redes sociais, edição de vídeo e animação, fez ainda um curso de crítica cinematográfica ministrado por Pablo Villaça. Cinéfilo, aprendeu a ser notívago assistindo TV de madrugada, o único espaço para filmes legendados na TV aberta.
Instinto Materno
2025-05-09T08:30:00-03:00
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