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É Assim Que Acaba
É Assim Que Acaba
Como alguém que acompanha adaptações literárias e o funcionamento do melodrama no cinema contemporâneo, encarei É Assim Que Acaba como uma promessa de tensão emocional e uma reflexão sobre ciclos de violência doméstica, mas terminei com uma mescla de reconhecimento e frustração. A direção de Justin Baldoni, que também assume o papel de Ryle Kincaid, manifesta uma ambição clara: traduzir o best-seller de Colleen Hoover para o cinema com sensibilidade e fidelidade. E, em parte, o filme entrega: a personagem de Blake Lively, Lily Bloom, transmite com convicção a dor de um passado de perdas, com a morte do pai e a herança emocional de um lar onde o afeto foi marcado por violência, e a esperança de construir algo novo ao abrir sua floricultura em Boston. A ambientação, a fotografia, o design de produção, desde o tom invernal da cidade ao delicado cenário da loja de flores de Lily, criam um clima de fábula romântica, o que funciona como armadura para o que virá depois.
É justamente ali que o filme se mostra mais interessante: a guinada, de um romance reluzente, para o peso da violência doméstica. Quando Ryle revela comportamentos abusivos, o espectador é convidado a revisar aquela primeira metade envolta em conto de fadas. A escolha de Baldoni de manter a aura sedutora do casal no início cria uma armadilha para o público: aquele homem perfeito está, aos poucos, revelando facetas sombrias. Esse engano narrativo é, talvez, o momento mais potente do filme. Por exemplo, na cena em que Lily confronta o espelho e vê os hematomas que havia tentado ignorar, a montagem rápida, a interrupção quase súbita do plano e a trilha sonora se combinam para gerar desconforto sem explodir em voyeurismo. É uma sequência exemplar do valor que o filme pode atingir: mostrar a violência não como espetáculo, mas como ruína dos afetos.
No entanto, esse ponto alto não é sustentado de forma consistente. A adaptação, mesmo fiel a muitos trechos do livro, sofre com ritmo irregular e decisões que suavizam o impacto dramático. A montagem, em especial no primeiro terço, parece encantada com o visual e o charme romântico a ponto de deixar o espectador à mercê de coincidências improváveis. A transição para o trauma deveria romper esse verniz, mas o filme hesita, como se temesse espantar o público ao entrar com mais brutalidade nesses temas. Isso resulta em uma sensação de meio termo: o melodrama quer ser pesado, quer incomodar, e, em certa medida, consegue, porém cede ao polimento estético e à estrutura tradicional do romance comercial.
As atuações transmitem essa ambivalência. Blake Lively segura a narrativa: sua Lily nunca é completamente passiva, mesmo nos momentos de dor, ela conserva uma força latente que salva a personagem de cair na carência estereotipada. Já Justin Baldoni, como ator e diretor, demonstra limitações: seu Ryle funciona bem no charme exterior, mas ao passar para o interior conflituoso, o olhar muitas vezes torna-se rígido, a emoção parece contida demais, como se o ator estivesse mais confortável com a versão boa do que com o abismo que seu personagem precisa habitar. Em contrapartida, Jenny Slate, no papel de Allysa, ilumina cada cena em que aparece: com leveza e autenticidade, ela torna-se o alívio necessário e a ponte emocional entre o público e a tragédia que se avizinha.
Tecnicamente, o filme acerta no design de som, na fotografia e na trilha sonora. A escolha musical é inteligente, saindo do romântico doce para algo mais tenso, apoiando o arco da personagem principal. A fotografia, especialmente nas sequências de flashback, usa cores mais frias, quase desbotadas, para diferenciar passado e presente, reforçando o peso das memórias. Mas essa sofisticação visual cria também uma armadilha estética, roubando parte da crueza necessária para que o tema da violência doméstica seja pleno em seu impacto. Em outras palavras: o filme está tão certo de sua beleza que, às vezes, a beleza ofusca a dor.
Num sentido narrativo, há mérito. A forma como o roteiro de Christy Hall adapta o ponto de vista de Lily para questionar a narrativa romântica que ela mesma fez de seu relacionamento, é um avanço. Introduzir montagem não-linear, flashbacks da infância, intercalar passado e presente, são escolhas que conferem densidade à trama. Ainda assim, o filme peca por omissões, principalmente em cenas de transição que poderiam aprofundar o vínculo com Atlas, ou o desenvolvimento gradual da espiral abusiva de Ryle. Cenas que foram reduzidas e simplificadas. O resultado: o tema é grave, mas o impacto emocional poderia ser maior.
Como momento marcante, destaco a cena em que Lily, sozinha na floricultura, recebe uma ligação de Ryle enquanto Atlas está do lado de fora. O silêncio que se segue, o olhar dela para flores murchas, o corte brusco para o passado da mãe com o pai violento, tudo convergindo num plano que revela: o ciclo se repete. Esse instante sintetiza o valor da obra: não é apenas sobre bom romance que dá errado, mas sobre reconhecer padrões, romper ciclos, escolher-se antes de tudo.
No balanço final, É Assim Que Acaba é um filme que tenta com honestidade falar sobre trauma, amor e emancipação. De fato, toca em algo cada vez mais relevante no cinema popular: a violência doméstica vista não como pano de fundo, mas como ferida silenciosa. E ele acerta em muitos momentos. Mas, por vezes, deixa-se seduzir pelo verniz romântico e pela convenção do gênero, diluindo o impacto para ampliar o apelo. Para quem leu o livro, haverá reconhecimento, mas também frustração. Para quem chega de fora, haverá envolvimento, mas também sensação de que faltou algo. Em resumo, vale assistir, vale refletir e vale discutir.
É Assim Que Acaba (It Ends With Us, 2024 / Estados Unidos)
Direção: Justin Baldoni
Roteiro: Christy Hall
Com: Blake Lively, Justin Baldoni, Jenny Slate, Brandon Sklenar
Duração: 130 min.
Ari Cabral
Bacharel em Publicidade e Propaganda, profissional desde 2000, especialista em tratamento de imagem e direção de arte. Com experiência também em redes sociais, edição de vídeo e animação, fez ainda um curso de crítica cinematográfica ministrado por Pablo Villaça. Cinéfilo, aprendeu a ser notívago assistindo TV de madrugada, o único espaço para filmes legendados na TV aberta.
É Assim Que Acaba
2025-12-15T08:30:00-03:00
Ari Cabral
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