Dez anos de Cidade de Deus
Dez anos se passaram desde o lançamento de Cidade de Deus nos cinemas brasileiros. Um marco, sem dúvidas. Se Carlota Joaquina foi o marco da Retomada e O Quatrilho nossa primeira indicação ao Oscar dessa fase, Cidade de Deus foi uma espécie de reconhecimento e maturidade. Muita coisa aconteceu depois dele, inclusive uma projeção internacional do nosso cinema contemporâneo.
Após a empolgação da estreia e ótimas bilheterias, Cidade de Deus foi nosso indicado ao Oscar de filme estrangeiro. Surpreendentemente não ficou entre os cinco finalistas, foi um balde de água fria. Mas, o júri da categoria é formado por pessoas mais velhas, tradicionais e a violência do filme de Meirelles acabou os assustando. Ele, então, estreou nos Estados Unidos com grande impacto, não por acaso, no ano seguinte estava lá na cerimônia mais importante da indústria e em quatro categorias: Melhor diretor (uma das mais importantes), melhor roteiro (mesmo sendo um roteiro em português), melhor montagem (elevando Daniel Rezende também ao estrelato) e melhor fotografia.
Antes de tudo, Cidade de Deus é um excelente filme. Muito bem construído, planejado, produzido, finalizado. Fernando Meirelles vinha da propaganda e trouxe muito de sua linguagem para o filme, o que incomodou alguns puristas. Não por acaso foi chamado de "Cosmética da Fome" por Ivana Bentes, comparando com a linguagem da Estética da Fome do Cinema Novo. Para a pesquisadora, ao colocar temas como favela, miséria e violência, tão caros ao cinema político, de uma maneira "publicitária", era como se estivesse maquiando a realidade em prol do entretenimento.
De certa forma é, tanto que Hollywood classificou a obra como filme de gangster. Mas, qual é o problema de unir entretenimento com temas sérios e polêmicos? De fato, boa parte dos espectadores de Cidade de Deus não se preocupavam muito com os problemas do protagonista Buscapé, aproveitando o filme para se divertir com as frases clássicas de Zé Pequeno (Dadinho, o ...). Mas, não deixa de haver uma autenticidade e uma denúncia naquela construção bem feita de uma obra de entretenimento. Tanto que teses foram criadas a partir dele e a discussão ganhou vários níveis, inclusive o de Bentes.
Porque a principal façanha de Cidade de Deus foi reconquistar o seu público, que estava cansado e desconfiado da qualidade do seu próprio cinema. O Brasil ganhou outro status e outros olhos para sua própria produção. Isso sem falar no reconhecimento internacional. O filme virou referência e figurou em diversas listas de melhores da década. Não deixa de ser um orgulho para uma classe que ficou esquecida por muitos anos, dependendo apenas de filmes de Os Trapalhões para se sustentar enquanto cultura.
Depois dele, muitos vieram, uns bons, outros nem tanto, mas hoje é inegável a diversidade do cinema brasileiro, que é visto por muitos como sinônimo de qualidade. As comédias continuam sendo a maior bilheteria, é verdade, mas temos representantes diversos, com bons públicos, não apenas cinemas independentes pouco vistos. Fernando Meirelles provou ser possível com poucos recursos, uma estratégia de não-atores, e muito planejamento construir um filme eterno. Porque depois de dez anos, Cidade de Deus continua vivo, atual, marcante.
Uma pena é que depois dele e da projeção internacional, Fernando Meirelles tenha voltado sua carreira para o exterior. Ao contrário de Walter Salles que intercala filmes nacionais com internacionais, Meirelles não filma mais no Brasil. O próprio diretor declarou que aqui ele só faz televisão, porque tem condições. Apesar de ter participado do projeto "Rio, eu te amo", que deve estrear em 2013, Cinema para ele é em Hollywood. Já foram três "O Jardineiro Fiel", "Ensaio Sobre a Cegueira" e "360", todos de forma independente. E temos que admirar que ele continue fazendo filmes autorais por lá, já que a maioria dos nossos brasileiros acabam se submetendo à indústria.
A atitude de Meirelles só demonstra que o cinema brasileiro mudou muito desde Cidade de Deus, mas nem por isso, conseguiu uma supremacia ideal. Dependemos ainda de editais públicos e patrocinadores que visam os descontos de impostos. Tão temos uma estrutura concisa, uma identidade única, nem mesmo uma produção autossustentável. A distribuição ainda é um calo e o gargalo ainda privilegia majores norte-americanas e parcerias com a Globo Filmes. Mas, estamos em um caminho muito mais consistente. E devemos muito disso àquelas três gerações de personagens de Cidade de Deus. Que Buscapé ainda consiga nos contar muitas histórias com sua lente e mente perspicaz.
Para encerrar, uma homenagem dos estúdios Maurício de Souza a pedido da Petrobrás para o filme. Crédito para Herculano Neto, que postou essa divertida peça em seu blog Por que você faz poema? no dia em que o filme completou 10 anos de lançamento (30 de agosto de 2012), fazendo-me lembrar dela.
Após a empolgação da estreia e ótimas bilheterias, Cidade de Deus foi nosso indicado ao Oscar de filme estrangeiro. Surpreendentemente não ficou entre os cinco finalistas, foi um balde de água fria. Mas, o júri da categoria é formado por pessoas mais velhas, tradicionais e a violência do filme de Meirelles acabou os assustando. Ele, então, estreou nos Estados Unidos com grande impacto, não por acaso, no ano seguinte estava lá na cerimônia mais importante da indústria e em quatro categorias: Melhor diretor (uma das mais importantes), melhor roteiro (mesmo sendo um roteiro em português), melhor montagem (elevando Daniel Rezende também ao estrelato) e melhor fotografia.
Antes de tudo, Cidade de Deus é um excelente filme. Muito bem construído, planejado, produzido, finalizado. Fernando Meirelles vinha da propaganda e trouxe muito de sua linguagem para o filme, o que incomodou alguns puristas. Não por acaso foi chamado de "Cosmética da Fome" por Ivana Bentes, comparando com a linguagem da Estética da Fome do Cinema Novo. Para a pesquisadora, ao colocar temas como favela, miséria e violência, tão caros ao cinema político, de uma maneira "publicitária", era como se estivesse maquiando a realidade em prol do entretenimento.
De certa forma é, tanto que Hollywood classificou a obra como filme de gangster. Mas, qual é o problema de unir entretenimento com temas sérios e polêmicos? De fato, boa parte dos espectadores de Cidade de Deus não se preocupavam muito com os problemas do protagonista Buscapé, aproveitando o filme para se divertir com as frases clássicas de Zé Pequeno (Dadinho, o ...). Mas, não deixa de haver uma autenticidade e uma denúncia naquela construção bem feita de uma obra de entretenimento. Tanto que teses foram criadas a partir dele e a discussão ganhou vários níveis, inclusive o de Bentes.
Porque a principal façanha de Cidade de Deus foi reconquistar o seu público, que estava cansado e desconfiado da qualidade do seu próprio cinema. O Brasil ganhou outro status e outros olhos para sua própria produção. Isso sem falar no reconhecimento internacional. O filme virou referência e figurou em diversas listas de melhores da década. Não deixa de ser um orgulho para uma classe que ficou esquecida por muitos anos, dependendo apenas de filmes de Os Trapalhões para se sustentar enquanto cultura.
Depois dele, muitos vieram, uns bons, outros nem tanto, mas hoje é inegável a diversidade do cinema brasileiro, que é visto por muitos como sinônimo de qualidade. As comédias continuam sendo a maior bilheteria, é verdade, mas temos representantes diversos, com bons públicos, não apenas cinemas independentes pouco vistos. Fernando Meirelles provou ser possível com poucos recursos, uma estratégia de não-atores, e muito planejamento construir um filme eterno. Porque depois de dez anos, Cidade de Deus continua vivo, atual, marcante.
Uma pena é que depois dele e da projeção internacional, Fernando Meirelles tenha voltado sua carreira para o exterior. Ao contrário de Walter Salles que intercala filmes nacionais com internacionais, Meirelles não filma mais no Brasil. O próprio diretor declarou que aqui ele só faz televisão, porque tem condições. Apesar de ter participado do projeto "Rio, eu te amo", que deve estrear em 2013, Cinema para ele é em Hollywood. Já foram três "O Jardineiro Fiel", "Ensaio Sobre a Cegueira" e "360", todos de forma independente. E temos que admirar que ele continue fazendo filmes autorais por lá, já que a maioria dos nossos brasileiros acabam se submetendo à indústria.
A atitude de Meirelles só demonstra que o cinema brasileiro mudou muito desde Cidade de Deus, mas nem por isso, conseguiu uma supremacia ideal. Dependemos ainda de editais públicos e patrocinadores que visam os descontos de impostos. Tão temos uma estrutura concisa, uma identidade única, nem mesmo uma produção autossustentável. A distribuição ainda é um calo e o gargalo ainda privilegia majores norte-americanas e parcerias com a Globo Filmes. Mas, estamos em um caminho muito mais consistente. E devemos muito disso àquelas três gerações de personagens de Cidade de Deus. Que Buscapé ainda consiga nos contar muitas histórias com sua lente e mente perspicaz.
Para encerrar, uma homenagem dos estúdios Maurício de Souza a pedido da Petrobrás para o filme. Crédito para Herculano Neto, que postou essa divertida peça em seu blog Por que você faz poema? no dia em que o filme completou 10 anos de lançamento (30 de agosto de 2012), fazendo-me lembrar dela.
Amanda Aouad
Crítica afiliada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), é doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Poscom / UFBA) e especialista em Cinema pela UCSal. Roteirista profissional desde 2005, é co-criadora do projeto A Guardiã, além da equipe do Núcleo Anima Bahia sendo roteirista de séries como "Turma da Harmonia", "Bill, o Touro" e "Tadinha". É ainda professora dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unifacs e da Uniceusa. Atualmente, faz parte da diretoria da Abraccine como secretária geral.
Dez anos de Cidade de Deus
2012-09-02T08:30:00-03:00
Amanda Aouad
Alice Braga|cinema brasileiro|Fernando Meirelles|materias|
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