O Brasil foi o último país a abolir oficialmente a escravidão. E ainda hoje trabalhos análogos são encobertos, principalmente em espaços rurais. A promessa de oportunidade é logo contrastada com enredamentos de dívidas, situações precárias e violência que obrigam as pessoas a produzirem em um ritmo desumano e sem a possibilidade de escolha.
Pureza
O Brasil foi o último país a abolir oficialmente a escravidão. E ainda hoje trabalhos análogos são encobertos, principalmente em espaços rurais. A promessa de oportunidade é logo contrastada com enredamentos de dívidas, situações precárias e violência que obrigam as pessoas a produzirem em um ritmo desumano e sem a possibilidade de escolha.
Baseado em acontecimentos reais da vida de Pureza Lopes Loyola em busca de seu filho Abel que teria sido aliciado para um desses trabalhos, o filme dirigido por Renato Barbieri se sustenta na força da história e na atuação de Dira Paes. E isso já é muito. É uma trama forte, envolvente, que nos angustia e nos emociona. E Dira Paes consegue defender com toda empatia necessária nos fazendo colar com sua personagem, sua dor e sua determinação.
O roteiro escrito pelo próprio Renato em parceria com Marcus Ligocki Júnior acaba não lidando tão bem com a economia narrativa da trama. Ainda que trabalhe bem o primeiro ato e o desenvolvimento dentro da fazendo, acaba trazendo um corte abrupto a partir do momento em que Pureza começa sua jornada para provar os crimes naquelas fazenda, tornando o filme, a partir de então, um compilado de momentos quase burocráticos, tornando a luta de Pureza quase inverossímil.
Não basta ser baseada na realidade, é preciso construir uma narrativa crível, que nos envolva e não nos faça questionar momentos diversos. O próprio Aristóteles já alertava em sua Poética que é preferível ao dramaturgo uma obra fictícia crível, do que uma real incrível. O que nos segura em frente a tela, como já foi dito, é a informação dos acontecimentos reais e a maneira como Dira nos conduz com sua personagem, nos passando verdade suficiente para que aquela história não se perca.
Não há como negar a força daquela luta. A angústia daqueles trabalhadores. O suspense de onde estaria Abel. E a dor de uma mãe desesperada, motivada por um caso particular, mas que representa algo muito maior: a sensação de impunidade, de injustiça e de impotência diante de esquemas que envolvem inclusive nomes fortes, como políticos, nos fazem refletir sobre esses diversos Brasis que se escondem em milhares de outros casos como os de Pureza e Abel.
A direção de arte da fazenda, com a construção da atmosfera inóspita, é feliz em reforçar essa angústia em nós diante de pequenos detalhes como a água suja, o trabalho forçado ou a cena na venda contrastando a ansiedade pela oportunidade com o enredamento dos custos iniciais de cada trabalhador que ali chega. Há um trabalho de elenco bem feito, construindo esse universo diverso de homens mais velhos, mais novos, mais simples e mais espertos que acaba construindo uma representação menos estereotipada. Ainda assim, falta fôlego à narrativa para construir um arco mais coerente e conciso.
Pureza é um filme com problemas técnicos, mas que cumpre uma função. Às vezes, a força da história nos conecta de uma maneira que é possível relevar algumas questões em busca do objetivo da obra. E o filme de Renato Barbieri dialoga com seu público, expondo a impressionante história de uma mãe, seu filho e uma luta que é de muitos e ainda não tem perspectiva de acabar. É também um alerta, uma denúncia e uma reflexão sobre o país em que vivemos com toda sua sensação de impunidade, injustiça, mas também que busca uma luz de esperança em dias melhores. Estamos mesmo precisando disso.
Pureza (Brasil, 2022)
Direção: Renato Barbieri
Roteiro: Renato Barbieri, Marcus Ligocki Júnior
Com: Dira Paes, Flavio Bauraqui, Matheus Abreu
Duração: 101 min.
Amanda Aouad
Crítica afiliada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), é doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Poscom / UFBA) e especialista em Cinema pela UCSal. Roteirista profissional desde 2005, é co-criadora do projeto A Guardiã, além da equipe do Núcleo Anima Bahia sendo roteirista de séries como "Turma da Harmonia", "Bill, o Touro" e "Tadinha". É ainda professora dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unifacs e da Uniceusa. Atualmente, faz parte da diretoria da Abraccine como secretária geral.
Pureza
2022-10-26T09:01:00-03:00
Amanda Aouad
cinema brasileiro|critica|Dira Paes|filme brasileiro|Flavio Bauraqui|renato barbieri|
Assinar:
Postar comentários (Atom)
cadastre-se
Inscreva seu email aqui e acompanhe
os filmes do cinema com a gente:
os filmes do cinema com a gente:
No Cinema podcast
anteriores deste site
mais populares do site
-
A cena que vamos detalhar, do filme Tubarão (1975), é um dos momentos mais emblemáticos do filme dirigido por Steven Spielberg. Nessa se...
-
Oldboy , dirigido por Park Chan-wook , é um filme sul-coreano que se destaca como um dos grandes tesouros do cinema contemporâneo. Com uma ...
-
A Princesa Prometida , dirigido por Rob Reiner e lançado em 1987 , é um conto de fadas moderno que encanta o público com sua mistura perfei...
-
Ridley Scott , o visionário por trás de clássicos como Alien e Blade Runner , nos trouxe A Lenda (1985), uma fantasia que se destaca pela ...
-
Venom: Tempo de Carnificina é um daqueles filmes que só faz sentido quando encarado como uma peça de entretenimento ultrajante e autossufi...
-
Cinema Sherlock Homes O filme de destaque atualmente é esta releitura do clássico do mistério pelas mãos de Guy Ritchie. O ex de Madonna p...
-
O Soterópolis programa cultural da TVE Bahia, fez uma matéria muito interessante sobre blogs baianos. Esta que vos fala deu uma pequena con...
-
Hitch: Conselheiro Amoroso é um daqueles filmes que, à primeira vista, parecem abraçar o clichê sem qualquer vergonha, mas que, ao olhar m...
-
Eletrizante é a melhor palavra para definir esse filme de Tony Scott . Que o diretor sabe fazer filmes de ação não é novidade, mas uma tra...