Grandes Cenas: Anticristo
INADEQUADA PARA MENORES DE 18 ANOS.
Aproveitando o lançamento da primeira parte de Ninfomaníaca, resgato aqui uma das cenas mais belas e perturbadoras da filmografia de Lars Von Trier até o momento. Falo do prólogo do filme Anticristo que mostra o casal interpretado por Willem Dafoe e Charlotte Gainsbourg fazendo sexo enquanto o filhinho sai do berço em direção à morte iniciando a trama de sofrimento, culpa e tentativa de resgate dos dois.
Começo analisando esta cena pela escolha da música Lascia ch'io pianga de George Friedrich Händel. O lamento é originalmente de sua primeira Ópera Almira, mas foi reaproveitada na Ópera Rinaldo trazendo ainda mais sentido para a cena e para o filme. Na ópera, ela é cantada por Almirena, a jovem cristã amada do protagonista Rinaldo que é sequestrada pela bruxa Armida na tentativa de ajudar o rei sarraceno a vencer o exército cristão.
Almirena canta a ária no segundo Ato da Ópera, quando se vê nos jardins do palácio de Armida como prisioneira. A letra cantada em italiano diz: Lascia ch'io pianga, mia cruda sorte, e che sospiri la libertà . Il duolo infranga queste ritorte , de' miei martiri , sol per pietà! (Deixe que eu chore, minha sorte cruel, e que eu suspire pela liberdade. A dor quebra estas cadeias, de meus martírios, só por piedade).
Colocar esta música como pano de fundo para uma cena de sexo entre um casal, enquanto o filho deles caminha para a morte é incrivelmente simbólico. Está tudo ali, o sofrimento e martírio daqueles pais durante todo o filme que se segue, a prisão que a religião nos deixa, com a ideia de pecado e condenação do prazer. A saga de defesa desta fé que as Cruzadas narradas na Ópera representam e que se reflete um pouco na trajetória do casal no "jardim do Éden".
Toda a cena é projetada em câmera lenta deixando tudo ainda mais angustiante e poético. É curioso perceber que o primeiro plano é a mão de Willem Dafoe abrindo o chuveiro. Banho purifica, e a primeira a vermos tomando o banho é ela, não ele, que apenas observa. É interessante ver os detalhes da câmera lenta que ainda nos mostra as gotas d´água caindo lentamente. E antes que eles se toquem, já vemos a janela da sala se abrindo, com a neve caindo lá fora, criando uma espécie de raccord com as gotas d´água no banheiro.
Quanto voltamos para o casal, o segundo plano já é de sexo explícito, com close na penetração, deixando claro que não estamos vendo uma cena deles "fazendo amor", mas sexo mesmo. Este é o ponto, como se Lars Von Trier quisesse sacudir o seu espectador da cadeira e alertá-lo para a proposta do filme.
Temos alguns planos dos dois fazendo sexo pela casa, com uma rápida inserção de um móbile de bebê. Detalhe que vemos também a babá eletrônica com o gráfico chegando ao máximo, porém, com o símbolo de silenciado. Ou seja, o casal não queria ser interrompido e não se importa com o que possa acontecer à criança.
Vemos, então, o bebê brincando com o ursinho, ainda em seu berço. Aos poucos ele vai se levantando e dando pistas do que quer fazer, como quando coloca o ursinho para "ver" pela janela. Em paralelo, os pais continuam no sexo, mas vemos apenas detalhes de objetos, como uma garrafa caindo e derramando seu líquido que pode ser interpretado como uma metáfora do prazer sexual.
O menino sai do cercadinho como se saísse de uma prisão e vê os pais na cama. Há quem jure que a mãe vê o filho neste momento, mas não dá para ter certeza absoluta, pois o plano próximo posterior a mostra de olhos fechados. Há interpretações psicanalíticas aí também como se o menino visse a mãe fazendo sexo e se matasse. E neste ponto podemos até pensar se o lamento da música não é do garotinho e não da mãe. Mas, são apenas elocubrações.
A questão é que nesse paralelo que se segue, Lars Von Trier brinca com a nossa angústia. Ficamos vendo, lembre-se em câmera lenta, o menino subindo da mesa e se aproximando da janela, ao mesmo tempo em que os pais alheios continuam em sua relação prazerosa. O efeito causado é mesmo de angústia, vontade de gritar, alertar, salvar o menino. O plongée mostrando a altura da janela nos deixa a certeza de que a queda é a morte, aumentando o desespero.
O raccord de movimento da cabeça do garotinho se jogando da janela e a mãe gemendo é extremamente simbólico. Uma espécie de libertação doentia, que gerará a culpa seguinte. Vemos o garotinho mergulhando no vazio, ao mesmo tempo que os pais chegam ao ápice do prazer juntos. Depois um plongée nos mostra ele caindo no chão e só depois, vemos em detalhe, o ursinho se despedaçando no chão, criando uma metáfora do que aconteceu com o menino. E o prazer dos dois acaba na mesma hora em que a máquina de lavar acaba a centrifugação de roupas.
Quem quiser ver a cena completa, segue. Mas, lembrem que é inadequada para menores de 18 anos e contém uma cena de sexo explícito.
Aproveitando o lançamento da primeira parte de Ninfomaníaca, resgato aqui uma das cenas mais belas e perturbadoras da filmografia de Lars Von Trier até o momento. Falo do prólogo do filme Anticristo que mostra o casal interpretado por Willem Dafoe e Charlotte Gainsbourg fazendo sexo enquanto o filhinho sai do berço em direção à morte iniciando a trama de sofrimento, culpa e tentativa de resgate dos dois.
Começo analisando esta cena pela escolha da música Lascia ch'io pianga de George Friedrich Händel. O lamento é originalmente de sua primeira Ópera Almira, mas foi reaproveitada na Ópera Rinaldo trazendo ainda mais sentido para a cena e para o filme. Na ópera, ela é cantada por Almirena, a jovem cristã amada do protagonista Rinaldo que é sequestrada pela bruxa Armida na tentativa de ajudar o rei sarraceno a vencer o exército cristão.
Almirena canta a ária no segundo Ato da Ópera, quando se vê nos jardins do palácio de Armida como prisioneira. A letra cantada em italiano diz: Lascia ch'io pianga, mia cruda sorte, e che sospiri la libertà . Il duolo infranga queste ritorte , de' miei martiri , sol per pietà! (Deixe que eu chore, minha sorte cruel, e que eu suspire pela liberdade. A dor quebra estas cadeias, de meus martírios, só por piedade).
Colocar esta música como pano de fundo para uma cena de sexo entre um casal, enquanto o filho deles caminha para a morte é incrivelmente simbólico. Está tudo ali, o sofrimento e martírio daqueles pais durante todo o filme que se segue, a prisão que a religião nos deixa, com a ideia de pecado e condenação do prazer. A saga de defesa desta fé que as Cruzadas narradas na Ópera representam e que se reflete um pouco na trajetória do casal no "jardim do Éden".
Toda a cena é projetada em câmera lenta deixando tudo ainda mais angustiante e poético. É curioso perceber que o primeiro plano é a mão de Willem Dafoe abrindo o chuveiro. Banho purifica, e a primeira a vermos tomando o banho é ela, não ele, que apenas observa. É interessante ver os detalhes da câmera lenta que ainda nos mostra as gotas d´água caindo lentamente. E antes que eles se toquem, já vemos a janela da sala se abrindo, com a neve caindo lá fora, criando uma espécie de raccord com as gotas d´água no banheiro.
Quanto voltamos para o casal, o segundo plano já é de sexo explícito, com close na penetração, deixando claro que não estamos vendo uma cena deles "fazendo amor", mas sexo mesmo. Este é o ponto, como se Lars Von Trier quisesse sacudir o seu espectador da cadeira e alertá-lo para a proposta do filme.
Temos alguns planos dos dois fazendo sexo pela casa, com uma rápida inserção de um móbile de bebê. Detalhe que vemos também a babá eletrônica com o gráfico chegando ao máximo, porém, com o símbolo de silenciado. Ou seja, o casal não queria ser interrompido e não se importa com o que possa acontecer à criança.
Vemos, então, o bebê brincando com o ursinho, ainda em seu berço. Aos poucos ele vai se levantando e dando pistas do que quer fazer, como quando coloca o ursinho para "ver" pela janela. Em paralelo, os pais continuam no sexo, mas vemos apenas detalhes de objetos, como uma garrafa caindo e derramando seu líquido que pode ser interpretado como uma metáfora do prazer sexual.
O menino sai do cercadinho como se saísse de uma prisão e vê os pais na cama. Há quem jure que a mãe vê o filho neste momento, mas não dá para ter certeza absoluta, pois o plano próximo posterior a mostra de olhos fechados. Há interpretações psicanalíticas aí também como se o menino visse a mãe fazendo sexo e se matasse. E neste ponto podemos até pensar se o lamento da música não é do garotinho e não da mãe. Mas, são apenas elocubrações.
A questão é que nesse paralelo que se segue, Lars Von Trier brinca com a nossa angústia. Ficamos vendo, lembre-se em câmera lenta, o menino subindo da mesa e se aproximando da janela, ao mesmo tempo em que os pais alheios continuam em sua relação prazerosa. O efeito causado é mesmo de angústia, vontade de gritar, alertar, salvar o menino. O plongée mostrando a altura da janela nos deixa a certeza de que a queda é a morte, aumentando o desespero.
O raccord de movimento da cabeça do garotinho se jogando da janela e a mãe gemendo é extremamente simbólico. Uma espécie de libertação doentia, que gerará a culpa seguinte. Vemos o garotinho mergulhando no vazio, ao mesmo tempo que os pais chegam ao ápice do prazer juntos. Depois um plongée nos mostra ele caindo no chão e só depois, vemos em detalhe, o ursinho se despedaçando no chão, criando uma metáfora do que aconteceu com o menino. E o prazer dos dois acaba na mesma hora em que a máquina de lavar acaba a centrifugação de roupas.
Quem quiser ver a cena completa, segue. Mas, lembrem que é inadequada para menores de 18 anos e contém uma cena de sexo explícito.
Amanda Aouad
Crítica afiliada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), é doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Poscom / UFBA) e especialista em Cinema pela UCSal. Roteirista profissional desde 2005, é co-criadora do projeto A Guardiã, além da equipe do Núcleo Anima Bahia sendo roteirista de séries como "Turma da Harmonia", "Bill, o Touro" e "Tadinha". É ainda professora dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unifacs e da Uniceusa. Atualmente, faz parte da diretoria da Abraccine como secretária geral.
Grandes Cenas: Anticristo
2014-01-22T08:30:00-03:00
Amanda Aouad
Charlotte Gainsbourg|grandes cenas|Lars Von Trier|Willem Dafoe|
Assinar:
Postar comentários (Atom)
cadastre-se
Inscreva seu email aqui e acompanhe
os filmes do cinema com a gente:
os filmes do cinema com a gente:
No Cinema podcast
mais populares do blog
-
Pier Paolo Pasolini , um mestre da provocação e da subversão, apresenta em Teorema (1968) uma obra que desafia não apenas a moralidade burg...
-
Em um cenário gótico banhado em melancolia, O Corvo (1994) emerge como uma obra singular no universo cinematográfico. Dirigido por Alex Pro...
-
Einstein e a Bomba é um documentário que vem causando alvoroço desde seu lançamento pela Netflix em parceria com a BBC . Nesta obra, diri...
-
Matador de Aluguel (1989), dirigido por Rowdy Herrington , é um filme de ação dos anos 80 . Uma explosão de adrenalina, pancadaria e tensão...
-
Quando a produção de As Marvels foi anunciada, tive alguns receios. Não por desconfiar da capacidade das protagonistas femininas, mas sim p...