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A Rainha

A Rainha - filme

Poucos filmes conseguem, com tanta elegância e tensão contida, transformar um episódio amplamente conhecido da história recente em uma obra de ficção política que transcende a reconstituição dos fatos. A Rainha (The Queen, 2006), dirigido por Stephen Frears, é um desses raros casos. Ele não apenas dramatiza o momento em que a monarquia britânica enfrentou uma de suas maiores crises de imagem – a morte da Princesa Diana –, como também disseca, com uma precisão quase cirúrgica, os bastidores do poder, a resistência à mudança e o papel simbólico da figura real em tempos de comoção pública. E o faz com uma contenção que impressiona, recusando o melodrama fácil e apostando num realismo elegante, que nunca é frio.

Stephen Frears, veterano do cinema britânico, já havia demonstrado sua habilidade para retratar personagens em situações de conflito moral em filmes como Ligações Perigosas (1988) e Alta Fidelidade (2000). Mas é em A Rainha que ele alcança um equilíbrio quase perfeito entre dramaturgia e contexto histórico. O roteiro de Peter Morgan — que viria a se tornar o arquiteto do retrato moderno da Coroa britânica, ao assinar também a série The Crown — oferece a Frears uma base rica para explorar o contraste entre a tradição representada pela Rainha Elizabeth II e o momento progressista encarnado por Tony Blair, recém-eleito Primeiro Ministro com um discurso de renovação.

A Rainha - filme
É nesse choque entre dois mundos — a realeza que se guia por protocolos centenários e a política moderna, atenta ao humor popular — que o filme encontra sua pulsação dramática. Mas seria injusto dizer que o motor emocional do longa reside apenas no roteiro ou na direção segura de Frears. A força vital de A Rainha está na atuação de Helen Mirren, que desaparece completamente na figura da monarca. Sua interpretação vai além da imitação física ou vocal. Ela constrói uma personagem interna, cheia de silêncios significativos, de olhares que revelam desconforto, frustração, orgulho ferido. A Elizabeth II de Mirren é uma mulher que se vê acuada não por um inimigo político declarado, mas por um mundo em transformação que não mais a compreende — e que ela tampouco consegue entender.

Essa performance lhe rendeu o Oscar de Melhor Atriz em 2007, e com razão. Há uma cena particularmente simbólica — e que talvez resuma todo o arco emocional da personagem — em que Elizabeth, sozinha, observa um veado majestoso nos campos escoceses. Não há diálogo, não há trilha emocional forçada. Apenas ela e o animal, uma criatura livre, vulnerável, nobre. A metáfora é óbvia, mas não soa forçada: ali, a Rainha se vê refletida naquela criatura observada à distância, admirada, mas também perseguida por todos. É nesse momento que o filme revela toda sua sensibilidade — e a atuação de Mirren, toda sua humanidade.

Michael Sheen, como Tony Blair, entrega uma atuação coesa, ainda que menos comentada. Seu Blair é jovem, carismático, mas ambíguo. Se por um lado representa o novo, por outro também cede à sedução do poder simbólico da monarquia. A dinâmica entre ele e a Rainha é construída com inteligência — há tensão, mas também respeito mútuo. Em vez de cair na caricatura do político oportunista versus a monarca intransigente, o filme opta por nuances. E é essa escolha que o torna tão interessante.

A Rainha - filme
Visualmente, A Rainha adota uma estética quase documental, mesclando imagens reais de arquivos com encenações bem cuidadas. O diretor de fotografia Affonso Beato não busca a grandiosidade de outros dramas históricos. Seu foco está na intimidade dos corredores palacianos, na luz cinzenta das manhãs escocesas, no isolamento físico e emocional da realeza. A montagem de Lucia Zucchetti também contribui para o ritmo contido e cerebral do filme, evitando qualquer pressa ou tentativa de agradar com reviravoltas narrativas.

Mas nem tudo funciona com a mesma precisão. Em alguns momentos, o filme beira a reverência excessiva. Embora tente humanizar Elizabeth II, há certo distanciamento crítico que pode incomodar. A abordagem é quase sempre respeitosa demais, evitando explorar contradições mais profundas da instituição monárquica. Ainda que a crise de imagem da Rainha seja o ponto central, falta um olhar mais questionador sobre o papel da Coroa em uma sociedade democrática e midiática.

Apesar disso, A Rainha é, acima de tudo, um estudo sobre silêncio. O silêncio de quem foi criada para nunca ceder, nunca opinar, nunca se emocionar em público. O silêncio de uma instituição que assiste, com desconforto, à ascensão de uma nova forma de realeza — midiática, sentimental, personificada em Diana. O filme não trata da morte de Diana em si, mas da morte de um certo pacto social entre monarquia e súditos. E nesse processo, Helen Mirren nos guia, com sua atuação monumental, por uma travessia que é também íntima e política.

Em tempos de culto à celebridade e da hiperexposição emocional, A Rainha oferece uma meditação rara sobre a dignidade do papel público, sobre os ritos do poder e os limites da empatia estatal. Um filme sóbrio, elegante e poderoso em sua contenção, que merece ser revisto não apenas como registro de um momento histórico, mas como retrato do fim de uma era e do nascimento de outra.


A Rainha (The Queen, 2006 / Reino Unido, EUA, França, Itália)
Direção: Stephen Frears
Roteiro: Peter Morgan
Com: Helen Mirren, Michael Sheen, James Cromwell, Sylvia Syms, Roger Allam, Tim McMullan, Douglas Reith, Mark Bazeley, Alex Jennings, Helen McCrory
Duração: 99 min.

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