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Mônica

Mônica - filme

Poucas vezes o cinema contemporâneo se permitiu parar, escutar e olhar tão fundo para uma personagem como faz Mônica (2022), dirigido por Andrea Pallaoro. Esse é um daqueles filmes que não oferecem respostas fáceis, nem buscam o impacto pela via do choque ou da manipulação emocional. É, antes de tudo, uma obra que se sustenta na suspensão — de tempo, de certezas, de julgamentos. Uma experiência contemplativa sobre o retorno, mas sobretudo sobre o que se perdeu no caminho.

Mônica, interpretada com uma contenção absolutamente hipnótica por Trace Lysette, é uma mulher trans que volta para a casa da mãe depois de mais de duas décadas afastada. O motivo é urgente: a mãe, vivida por Patricia Clarkson, está em estágio terminal de câncer. Mas o retorno, aqui, não é apenas geográfico. É emocional, existencial. E, talvez, impossível.

Pallaoro
, cineasta ítalo-americano que já havia ensaiado uma abordagem sensorial e contemplativa no filme Hannah (2017), avança ainda mais nesse terreno de emoções subterrâneas. Seu cinema é de gestos mínimos e significados densos, onde o silêncio é muito importante. Mônica se desenrola como um fluxo de memória incômodo, onde cada plano parece estar à espera de algo que nunca se concretiza. E essa frustração, que poderia soar como falha narrativa, é, na verdade, o próprio ponto de contato com a experiência da protagonista. O filme é dela: silencioso, delicado, tenso, por vezes desconfortável.

Trace Lysette, conhecida por trabalhos pontuais em séries como Transparent, carrega o filme com uma dignidade rara. Seu rosto, muitas vezes mantido em enquadramentos fechados, transmite um emaranhado de sentimentos que o roteiro, sabiamente, jamais explicita. O que ela sente ao voltar para um lar que nunca a acolheu plenamente? O que há por trás daquele olhar que parece oscilar entre a doçura e a raiva contida? Lysette não atua para ser admirada. Ela habita o espaço como quem testa sua própria existência. É uma performance silenciosa, mas poderosa, marcada por pausas que falam mais do que qualquer monólogo.

Patricia Clarkson, por sua vez, entrega uma mãe fragilizada pelo corpo que falha e por memórias que se esgarçam. A dinâmica entre as duas evita o confronto direto. O filme não cede à tentação de explodir em gritos ou revelações dramáticas. Há, sim, momentos de tensão e desconforto, mas eles surgem no subtexto, nas entrelinhas. E isso exige um tipo de atenção rara do espectador moderno, habituado à catarse fácil.

A direção de Pallaoro aposta em uma linguagem formalmente rigorosa. Ele filma quase tudo em uma razão de aspecto diferente, um quadro mais quadrado, estreito, que limita o campo de visão. Essa escolha, mais do que estética, é profundamente simbólica: Mônica está de volta, mas ainda confinada. Ao invés de amplidão, o enquadramento oferece claustrofobia emocional. É como se o próprio espaço do filme recusasse oferecer à personagem o conforto da liberdade total. Essa estética contida — que em alguns momentos pode soar até fria ou distante — força o espectador a mergulhar nos detalhes: o olhar, a respiração, a hesitação dos gestos.

Mônica - filme
Um dos momentos mais impactantes do filme acontece quando Mônica, já instalada na casa da mãe, escuta ao longe uma música que fez parte da infância. Não há explicação, não há fala. Apenas o rosto dela. E é nesse rosto que toda a dor do abandono, da rejeição e da busca por pertencimento se revela. Sem gritar. Sem chorar. Apenas estando ali, viva, tentando suportar o peso de existir.

Mas nem tudo funciona perfeitamente. A frieza da encenação, aliada ao ritmo extremamente cadenciado, pode criar uma barreira para alguém menos disposto ao exercício da contemplação. Em alguns trechos, o filme parece insistir demais no gesto de não dizer, a ponto de parecer que evita se comprometer emocionalmente. Há uma linha tênue entre o minimalismo e o esvaziamento — e Mônica, em certos momentos, flerta perigosamente com o segundo. A ausência de conflitos verbais mais evidentes, ainda que coerente com a proposta do filme, pode limitar o impacto dramático.

Ainda assim, é inegável que estamos diante de uma obra de grande valor simbólico e estético. Um filme que não tenta explicar o que é ser trans, mas que simplesmente mostra. Que não se esforça para construir empatia artificial, mas que confia na presença humana como elo. A escolha de colocar uma atriz trans como protagonista de uma história sobre família, reconciliação e silêncio é, por si só, um gesto político — mas o mérito do filme está em não fazer desse gesto o seu único motor narrativo. Mônica não é “um filme sobre uma trans”. É sobre uma filha, sobre uma mulher, sobre alguém que retorna.

Ao final da projeção, o que permanece não é uma grande revelação, nem um arco fechado. É um sentimento de suspensão, de algo que ficou por dizer — e que talvez nunca será dito. E talvez seja esse o ponto mais dolorosamente verdadeiro do filme: há histórias que não se resolvem. Relações que não se curam. E mesmo assim, a vida continua.

Mônica é uma obra que pede tempo. Tempo para ser absorvida. Para ser sentida. E, sobretudo, para ser lembrada. Num cenário cada vez mais barulhento, Andrea Pallaoro escolheu o silêncio como ferramenta narrativa e existencial. E foi esse silêncio que me acompanhou ao sair da sessão — um silêncio cheio, carregado de tudo que não coube nas palavras.


Mônica (Monica, 2022 / Itália, EUA)
Direção: Andrea Pallaoro
Roteiro: Andrea Pallaoro, Orlando Tirado
Elenco: Trace Lysette, Patricia Clarkson, Adriana Barraza, Emily Browning, Joshua Close
Duração: 105 min.

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