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Cigarro do Crime

Cigarro do Crime - filme

Quando se pensa em um documentário investigativo sobre contrabando no Brasil, é natural que a mente do espectador mais acostumado a thrillers hollywoodianos se prepare para algo frio, factual, talvez até um pouco engessado pelo excesso de dados. Mas Cigarro do Crime (2020), dirigido por João Wainer e produzido pela Vice Brasil em parceria com a FNCP (Fórum Nacional Contra a Pirataria), toma uma direção oposta. A produção transforma o que poderia ser apenas um retrato burocrático do tráfico de cigarros em uma narrativa eletrizante e reveladora — quase como se estivéssemos diante de um filme noir tropical, sem glamour, mas com muito realismo e senso de urgência.

João Wainer, que já havia mostrado domínio do formato documental em obras anteriores como Pixo e Junho – O Mês Que Abalou o Brasil, aqui se afirma como um diretor que sabe onde mirar sua câmera e, mais importante, quando deixá-la observar em silêncio. Em Cigarro do Crime, ele acerta ao tratar o contrabando de cigarros do Paraguai para o Brasil não como um problema periférico ou regional, mas como uma rede pulsante, sofisticada, alimentada por engrenagens políticas, sociais e econômicas muito mais próximas de nós do que gostaríamos de admitir.

Cigarro do Crime - filme
O filme parte da fronteira — especificamente de Ciudad del Este —, ponto quente e já quase folclórico nas discussões sobre tráfico de bens ilegais. Mas o mérito do documentário é ampliar essa geografia, traçando o percurso do cigarro clandestino por estradas esburacadas, atravessando cidades pequenas, grandes centros, até desembocar nas mãos do consumidor comum. Esse mapeamento não é apenas geográfico, é sobretudo humano. Policiais, comerciantes, motoristas, pequenos contrabandistas e especialistas aparecem no filme sem o filtro higienizado das grandes mídias. Eles falam com uma franqueza desconcertante, que transforma o espectador em cúmplice e testemunha ao mesmo tempo.

O documentário é dividido de forma clara, com ritmo envolvente. Há uma construção narrativa quase jornalística, mas sem abdicar do estilo. O uso de drones sobrevoando regiões de fronteira, por exemplo, cria uma dimensão quase distópica: cidades tomadas pelo comércio ilegal, onde o cigarro contrabandeado se mistura à paisagem como parte natural da cultura local. Ao longo dos seus 43 minutos, o filme revela que esse tipo de contrabando movimenta cifras bilionárias e tem conexões diretas com o crime organizado — inclusive com milícias e facções de renome nacional.

O momento mais impactante do filme talvez seja quando, em um diálogo com um dos transportadores, o entrevistado — com o rosto sombreado e voz distorcida — relata a naturalidade com que atravessa caixas e mais caixas de cigarros na calada da noite, burlando fiscalização com a ajuda de olheiros e corrupção sistêmica. É ali que o documentário expõe seu ponto mais alto: a banalização do crime. Não há vilões caricatos ou heróis iluminados, há apenas engrenagens de um sistema que funciona com eficiência. É um trecho que representa a alma do filme — um Brasil onde a ilegalidade se organiza melhor que o próprio Estado.

Cigarro do Crime - filme
Não se trata de um documentário que se apoia em dramatizações ou em recursos estéticos excessivos. Ao contrário, o que chama atenção em Cigarro do Crime é a crueza. As imagens não são bonitas, e isso é intencional. A câmera busca o concreto, o barro, o mato, os portos clandestinos, os galpões empoeirados. Tudo tem cheiro de realidade, e isso aumenta a força do discurso. João Wainer não estetiza a pobreza, tampouco se rende a uma linguagem sensacionalista. Ele confia na contundência da informação bem apresentada, no ritmo de uma montagem que respeita a inteligência do espectador, e no poder de depoimentos que, por si só, dizem mais do que qualquer infográfico.

Mas nem tudo é equilíbrio. Em alguns momentos, Cigarro do Crime corre o risco de parecer um material institucional. A participação da FNCP como co-produtora levanta questões sobre a independência do discurso. Por mais que o documentário aponte para a complexidade do fenômeno, há instantes em que a narrativa soa enviesada, quase como um esforço em reforçar o discurso oficial de combate ao crime, sem abrir espaço para outras camadas de interpretação, como o papel do Estado na manutenção dessa cadeia ilegal. Isso não tira o mérito investigativo da obra, mas marca uma tensão ética que o espectador mais atento pode — e deve — questionar.

Ainda assim, o saldo é imensamente positivo. Ao colocar luz sobre um tema muitas vezes tratado como pano de fundo, Cigarro do Crime escancara como o tráfico de cigarros é um problema de segurança pública, de saúde, de economia e, principalmente, de estrutura social. O documentário é corajoso ao revelar que o consumidor final — que compra o maço barato no semáforo ou na vendinha do bairro — é parte integrante desse sistema. Isso é dito sem julgamento moral, mas com uma clareza desconfortável.

No panorama do cinema documental brasileiro contemporâneo, Cigarro do Crime ocupa um espaço relevante ao trazer à tona um problema que não é visualmente espetacular, mas que afeta milhões de pessoas. É um filme que incomoda mais pela informação do que pela forma, e isso, dentro do gênero, é uma virtude rara. João Wainer confirma-se como um documentarista necessário — alguém que entende que filmar é, acima de tudo, um ato político.

Se você busca um documentário brasileiro forte, atual, que vá além do senso comum e revele como o contrabando de cigarros é parte de uma teia maior de corrupção e informalidade econômica no país, Cigarro do Crime merece ser visto e discutido. Ele não entrega respostas fáceis, mas obriga a fazer perguntas urgentes — e esse é o tipo de cinema que mais precisamos agora.


Cigarro do Crime (2020 / Brasil)
Direção: João Wainer
Roteiro: João Wainer, Gabriela Pessoa
Com: Débora Lopes, Mauri König, Federico Filártiga, Horacio Cartes, Rodrigo Pimentel
Duração: 43 min.

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