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O Que Ficou Para Trás

O Que Ficou Para Trás - filme

Assistir O Que Ficou Para Trás é uma experiência que permanece na pele por um tempo. O terror que Remi Weekes propõe não se baseia em sustos fáceis, mas numa conjunção entre o sobrenatural, o medo do passado e a brutalidade do presente. Uma interseção que torna a obra marcante.

O filme começa com um casal sudanês, Bol e Rial, fugindo de um horror real: a guerra, a morte, a travessia perigosa e a perda da filha. Quando chegam à Inglaterra, o alívio que se espera se transforma em uma outra forma de angústia. Não só pelas barreiras burocráticas, pela xenofobia ou pelo preconceito latente, mas por aquilo que carregam dentro de si, em suas memórias e traumas. O Que Ficou Para Trás não se contenta em retratar refugiados como vítimas passivas. Bol e Rial são personagens cheios de contradições, de escolhas forçadas, de dores visíveis e ocultas.

A direção de Weekes revela maturidade, especialmente para uma estreia. Ele consegue modular a tensão com economia: cenas soturnas, corredores mal iluminados, objetos que se movem ou sombras que se insinuam. Nada é gratuito. Tudo reflete uma psique perturbada, que se recusa a esquecer. A casa, seu espaço físico, se torna extensão do mental: o lugar onde o horror externo e interno se fundem. Isso é reforçado pela fotografia de Jo Willems, que contrapõe luz e sombra, espaços confinados e ruas com neblina, correndo entre o tom frio da Inglaterra e a memória quente, às vezes em cores alaranjadas, do Sudão. A trilha sonora de Roque Baños também ajuda: não invade, mas incide no momento certo, deixando silêncio incômodo sempre que possível.

O Que Ficou Para Trás - filme
As atuações de Wunmi Mosaku (Rial) e Sope Dirisu (Bol) são centrais e muito bem sustentadas. Mosaku transmite vulnerabilidade forte, uma mulher que tenta manter seus rituais culturais, sua fé, lembrar de quem era, mesmo quando tudo em volta aponta para o esquecimento ou a negação. Dirisu, interpretando Bol, vive o conflito entre adaptar-se e ser aceito e o peso da culpa de sobreviver, de deixar para trás, de contar ou não contar o que aconteceu e ser julgado silenciosamente pelo olhar do outro. Ele sofre, fisicamente e silenciosamente. Percebemos seus gestos e sua voz. Sua resistência ao sofrimento interno traduziu-se com eficiência. Não há excesso de histrionismo, mas há profundidade.

Quanto à narrativa, o filme se estrutura em vários atos bem desenhados. O primeiro ato estabiliza o espectador no drama externo: a fuga, o refúgio, a chegada. O segundo ato começa a desenhar os fantasmas, tanto os literais quanto os figurados, em sonhos, alucinações, aparições. O terror chega devagar. E é aí que o filme mais acerta. Mas nem tudo funciona com perfeição: o terceiro ato, o momento de confronto, peca por trazer uma explicitude de que, talvez, não houvesse necessidade. A partir da revelação dos pecados ou erros do passado, o filme, que transita numa zona ambígua entre o sobrenatural e o psicológico, decide clarificar demais algumas motivações. Esse excesso de clareza dilui um pouco o impacto da ambiguidade que vinha sendo tão bem cultivada.

O Que Ficou Para Trás - filme
Em termos de ritmo, há momentos em que a lentidão pesa, especialmente para espectadores acostumados ao terror mais imediato. As transições entre o real e o sonho/alucinação podem confundir, não por sua complexidade, mas por uma leitura emocional que exige paciência. O medidor de sustos cumpre o papel, mas não surpreende muito: quem conhece bem o gênero antecipa alguns desses momentos. No entanto, muitos dos sustos funcionam porque não se apoiam só no convencional. Eles dependem do contexto, do passado dos personagens, do que eles carregam.

Um momento particularmente marcante é a cena em que Rial caminha sozinha até uma clínica sob um céu crepuscular, enfrentando olhares, humilhações raciais, o vento, a cidade hostil. É uma sequência que sintetiza o que O Que Ficou Para Trás propõe: a exteriorização do trauma, onde o mundo físico se transforma em labirinto opressor, onde cada passo, cada som, cada sombra pode despertar uma lembrança ou uma acusação silenciosa. O filme mostra sua força máxima na mistura de realismo social com horror estético.

No balanço final, O Que Ficou Para Trás é mais do que um filme de sustos: é uma obra de horror profundamente moral. Ele nos confronta com nossa incapacidade de acolher o outro, com o abismo que existe entre sobreviver e viver, entre ser visto e ser invisível. Seus méritos estão em suas camadas simbólicas, no cuidado estético, no empenho de suas atuações. Suas falhas residem sobretudo num ato final que explica demais e num ritmo que pode afastar quem busque ação ou choque frequente. Ainda assim, é um filme que inquieta, emociona e vale cada minuto.


O Que Ficou Para Trás (His House, 2020 / Reino Unido)
Direção: Remi Weekes
Roteiro: Remi Weekes
Com: Wunmi Mosaku, Sope Dirisu, Matt Smith
Duração: 93 min.

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