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Faça a Coisa Certa

Faça a Coisa Certa - filme

Assisti Faça a Coisa Certa (Do the Right Thing, 1989) sabendo que se tratava de um ponto de inflexão no cinema negro americano, mas o que me impressionou mais foi perceber que, além de um filme sobre raça, ele é um estudo sobre calor, identidade, símbolos e limites humanos. Spike Lee não oferece respostas fáceis, mas nos coloca em um Brooklyn fervendo, onde as tensões culturais e individuais se acumulam até implodir, e nos obriga a sentir, ao invés de apenas ver.

Desde a sequência inicial, em que Rosie Perez dança com luvas de boxe ao som de Fight the Power, Lee impõe um tom cultural, agressivo e simbólico. É como se todo o filme já gritasse para nós que não será um passeio confortável. Essa abertura funciona como um prólogo de resistência, inserindo no corpo do filme imediatamente o embate entre força e representação. Em seguida, somos imersos no bairro de Bedford-Stuyvesant, Brooklyn, com suas esquinas, porteiros, vendedores, prédios, frentes de lojas e, no centro disso tudo, Sal e sua pizzaria.

O olhar de Spike Lee sobre esse espaço urbano é quase arquitetônico: cada rua, cada janela, cada fachada cultural é palco de disputa simbólica. Quando Buggin’ Out observa as fotografias na Parede da Fama da pizzaria, Sinatra, DiMaggio, Pacino e ninguém negro, ele não está apenas apontando injustiça simbólica, mas reivindicando presença. Se os clientes são negros, por que não um rosto negro na parede? Esse momento é um dos eixos simbólicos do filme, porque revela que a omissão pode ser tão ofensiva quanto a representação explícita de preconceito.

Faça a Coisa Certa - filme
À medida que o dia avança e o calor se torna quase personagem, as pequenas irritações se acumulam. O aparelho de som de Radio Raheem, alto demais para Sal, incomoda; os irmãos de Sal, especialmente Pino, dirigem olhares hostis ao bairro; as conversas no meio-fio vão ganhando subtextos de preconceito, ressentimento, expectativa. Lee documenta cada interação com uma elegância tensa, e Ernest Dickerson, seu diretor de fotografia, ajuda a tornar visível esse incômodo: cores saturadas, luz dura e contrastes visuais reforçam que estamos em um forno social.

É essencial destacar que Faça a Coisa Certa não cria heróis ou vilões unilaterais. Ele observa que nenhum personagem é completamente inocente: os conflitos começam com pequenas provocações, agravados por escolhas pessoais ambíguas. Mookie, personagem interpretado pelo próprio Lee, é o eixo moral instável do filme. É amigo de Sal, trabalha para ele, vive no bairro, sente lealdades e ao mesmo tempo freios morais contraditórios.

O clímax é brutal e simbólico: Radio Raheem é morto por policiais em meio a uma luta que já era inevitável, e Mookie reage lançando uma lixeira contra a vitrine da pizzaria de Sal. É um gesto agressivo, mas também pode ser visto como um desvio simbólico da ira da multidão, já que em vez de atacar Sal pessoalmente, ele atira contra seu negócio. Essa ambiguidade é proposital: Spike Lee nos força a questionar “o que é a coisa certa?”. E nesse momento, o filme nos joga no abismo de não ter certezas.

Faça a Coisa Certa - filme
O final reforça o clima incômodo. Ao fim da tragédia, Sal e Mookie trocam poucas palavras. Embora haja um mínimo de empatia ali, a cicatriz permanece aberta. Surge então uma tela com duas citações: uma de Martin Luther King e outra de Malcolm X — duas visões de resistência diferentes. Lee deixa o espectador com essa tensão aberta: entre simbolismo, narrativa e moral, qual caminho seguir? Esse gesto final reforça que Faça a Coisa Certa não é um manifesto monolítico, mas um espelho às nossas próprias escolhas.

Entre os pontos de força está o elenco de apoio. Danny Aiello, como Sal, carrega sua própria vulnerabilidade. Ele ama a comunidade, embora ajude a reproduzir um gesto racista pela omissão cultural. Bill Nunn como Radio Raheem é imponente e simbólico; Giancarlo Esposito como Buggin’ Out traz fúria justa e articulada. E todos contribuem para que o filme imprima essa coreografia de tensões, não um panfleto unidimensional.

Mas, em alguns momentos, o ritmo parece se arrastar. A escalada dramática às vezes arrasta subtramas que não se conectam completamente. São personagens menores que surgem sem desdobramento. Algumas reações de personagens soam excessivamente simbólicas, menos realistas, como se estivessem ali para cumprir anotações temáticas. E é possível questionar se o gesto final de Mookie é uma ação ética ou equivocada. Para quem busca uma conclusão moral clara, pode parecer ambíguo demais, quase desconcertante.

Ainda assim, o acerto do filme reside justamente nisso: nos deixar desconfortáveis. Ele não se apresenta como manual de comportamento, mas como uma experiência simbólica, narrativa e empática. Ao nos fazer sentir empatia por personagens contraditórios, ele desmonta nossas certezas morais.

Ao visitar Faça a Coisa Certa hoje, é impressionante perceber sua atualidade: o debate sobre representatividade, espaços simbólicos de exclusão cultural, a ambiguidade moral de protestos e a forma como tensões não resolvidas explodem. O Brooklyn de 1989, com bairros diversos, frentes de luta cultural e micro conflitos latentes, poderia muito bem ser um bairro de qualquer grande cidade hoje. A combinação entre narrativa urbana, simbolismo, tensão e ambiguidade moral constrói um filme que permanece relevante. Uma obra que, mais do que apontar o que é “certo”, nos obriga a encarar que talvez não exista uma resposta simples.

Em resumo, Faça a Coisa Certa é uma meditação sobre calor social, identidade e responsabilidade. Não nos oferece um modelo de redenção, mas uma convocação à reflexão: em um ambiente onde pressuposições e estigmas convivem lado a lado, qual escolha fazemos? O calor não derrete as certezas, ele as expõe. E isso, para o cinema, é uma das coisas certas a se expor e discutir.


Faça a Coisa Certa (Do the Right Thing, 1989 / Estados Unidos)
Direção: Spike Lee
Roteiro: Spike Lee
Com: Spike Lee, Danny Aiello, Giancarlo Esposito, Bill Nunn, John Turturro, Ossie Davis, Ruby Dee, Samuel L. Jackson
Duração: 120 min.

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