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Raul - O Início, O Fim e O Meio
Raul - O Início, O Fim e O Meio
Já é ritual conhecido, todo aniversário de morte ou dia de finados, o Cemitério Jardim da Saudade em Salvador enche de fãs de Raul Seixas para cantar e relembrar o ídolo. Assim como anualmente as ruas de São Paulo são invadidas pela Passeata em Memória de Raul. Como definiu Paulo Coelho, Raul Seixas é uma lenda, e de lenda não se conta "a" história, o que as pessoas acreditam que seja, será. Mas, Walter Carvalho resolveu contar a história do homem por traz do mito em Raul - O Início, O Fim e O Meio, agradando muita gente, levando inclusive o prêmio de melhor documentário na Mostra de SP tanto da crítica, quanto do público.
Raul - O Início, O Fim e O Meio tenta abarcar toda a vida do cantor e compositor Raul Seixas, desde sua infância em Salvador, como membro do "Elvis Rock Clube", o início de carreira com Os Panteras, seus parceiros musicais desde Paulo Coelho à Marcelo Nova, suas quatro mulheres e três filhas, sua empregada fiel, sua família, as drogas, a bebida e sua doença. Tudo isso intercalado com diversas músicas, todos os seus principais sucessos estão contemplados com alguns acordes, e depoimentos diversos. Os mais divertidos são dos amigos de infância, companheiros do Clube do Elvis, repetindo músicas e passos do rei do rock e relembrando a paixão de Raul tanto por este quanto pelo Rei do Baião, Luiz Gonzaga. Não por acaso, o primeiro sucesso nacional do cantor foi "Let Me Sing, Let Me Sing" que mistura rock'n'roll com baião com um talento único.
Walter Cavalho fez uma pesquisa extensa, colheu depoimentos na Bahia, no Rio de Janeiro, em São Paulo, nos Estados Unidos, onde estão parte das mulheres de Raul e em Genebra, onde está Paulo Coelho. Ouviu a todos, menos sua primeira esposa, que prefere não falar no assunto. Ainda assim, está representada por uma carta lida por sua filha via Skype. Ouviu também seus parceiros, produtores musicais e familiares. Além de fãs famosos, como Pedro Bial, que dá um depoimento empolgado sobre o ídolo. Há também alguns estranhos no ninho, como Daniel Oliveira que aparece em uma única cena sem sentido para falar da fonética do nome Raul. Caetano Veloso que aparece como se fosse para dar um respaldo ao roqueiro, o que não era necessário. E Zé Ramalho, que surge em nossa tela e infelizmente não abre a boca para dizer nada. Destaque para o sempre inteligente Tom Zé e para o fã Sylvio Passos que conviveu com o ídolo e tem várias relíquias do mesmo.
Mas, faltou o fã anônimo. Tirando um cover que surge e some do nada, além de cenas de arquivo rápidas da passeata em São Paulo e do enterro de Raul Seixas, essa legião de fãs que cultuam o ídolo como este não queria, já que era um “guru que não queria seguidores”, fica de fora do documentário. A escolha de Walter Carvalho é mesmo pelo homem e não pelo mito. Mas, em um documentário que procurou abarcar tudo, essa acabou sendo uma falta sentida. Nem que fosse para questionar tamanha idolatria por um homem que pregou a libertação delas. Raul sempre quis demonstrar em suas músicas a capacidade humana de pensar e ir além. Mesmo que afirmasse que não fazia música de protesto, ele protestou e muito contra o regime vigente, contra o marasmo, contra a hipocrisia. A música Ouro de Tolo, por exemplo, ressaltada em um bom pedaço do filme, é um hino a não-acomodação e a não-conformidade.
O filme também dá um bom espaço à polêmica Sociedade Alternativa, inspirada nos escritos do ocultista Aleister Crowley e que foi chamada de culto ao demônio, inclusive por um dos seus membros, Paulo Coelho, no livro As Valkírias. Walter Carvalho vai buscar os líderes dessa seita religiosa que explica o que é o verdadeiro diabo que eles cultuam, o anjo caído que trouxe a luz aos homens, e não a maldade que prega a Igreja. E é impressionante como eles, ainda caracterizados, seguem esses preceitos. Carvalho é perspicaz ao fazer a montagem em paralelo deles e de Paulo Coelho que realmente considera aquela uma época nefasta em sua vida. É curioso e irônico o momento em que ficamos sabendo que os líderes ainda consideram Coelho um membro porque nunca pediu oficialmente seu juramento de volta.
Paulo Coelho, por sinal, acaba tangenciando boa parte do documentário, seja pelos sucessos que criou em parceria com Raul, ou pelo fato de lhe apresentar as drogas, já que, antes de conhecê-lo, Raul era "careta", ou ainda por essa rixa que se formou quando ele virou "guru" exotérico, criticando boa parte de suas atitudes anteriores, sendo considerado por muitos fãs como um traidor. Cria-se então, a preferência por outro parceiro musical, Cláudio Roberto, co-autor de Maluco Beleza. E mais uma vez, Walter Carvalho faz uma montagem em paralelo para tentar forçar a resposta de quem foi o principal parceiro de Raul, colocando inclusive lamentáveis inserções de uma briga de galo. Mas, não podemos deixar de falar da inusitada situação da mosca que invade a entrevista de Coelho, e este, com bastante humor, chama a atenção de que "em Genebra não tem moscas", mas Raul tinha que se fazer presente.
Há ainda as imagens de arquivo que nos deixam sempre próximos a Raul. Seja em arquivos caseiros, shows, entrevistas ou programas de televisão, o cantor e compositor pode dar sua versão da história em diversos momentos. Tornando o filme mais atrativo para os fãs que podem matar saudades e se emocionar com cada manifestação em tela. O roteiro de Leonardo Gudel e a montagem de Pablo Ribeiro segue a fórmula cartesiana conhecida de intercalar depoimentos, imagens de arquivo e trilhas sonoras que marcaram a carreira do cantor. Isso sem falar de cenas iniciais de filmes de Elvis Presley. Mas, tem bons momentos de inspiração como o início clipado, as montagens em paralelo mostrando várias visões de um mesmo tema, como os já citados de Paulo Coelho ou de suas ex-companheiras, ou cenas poéticas como os ex-integrantes d'Os Panteras tocando por trás de um pano com as fotos antigas e a voz de Raul.
A fórmula conhecida funciona e Walter Carvalho acaba agradando a todos que estão acostumados a esse formato já tão utilizado para documentários biográficos. Confesso que isso me incomoda um pouco. Parece que o Brasil estacionou nesse formato da década de sessenta, tão explorado pela televisão. Tirando João Jardim e Eduardo Coutinho, parece que não temos experimentações da linguagem que a tornam mais dinâmica e interessante. Ainda mais quando temos documentários musicais. Poucos exemplos fogem a isso como Coração Vagabundo de Fernando Grostein Andrade. Poderíamos nos inspirar um pouco mais com exemplos próximos como o trabalho do suiço Georges Gachot em Rio Sonata, sobre Nana Caymmi ou Música é Perfume sobre Maria Bethânia.
Mas, isso é apenas um parêntese de considerações pessoais sobre alguém que estuda documentários e gostaria de ver avanços dessa linguagem por aqui. Ainda mais em um filme sobre um homem que foi uma metamorfose ambulante. Apesar de tradicional, o filme de Walter Carvalho é bom sim. Cumpre seu papel de trazer Raul Seixas para nossas telas, em uma homenagem digna que informa, inspira e levanta curiosidades. Acima de tudo, empolga, principalmente pelo talento do músico e sua imensa obra. Por piada ou por emoção, vai ter muita gente gritando nos cinemas: "Toca Raul"! (sem o uivo, por favor).
Raul - O Início, O Fim e O Meio
Direção: Walter Carvalho
Roteiro: Leonardo Gudel
Duração: 120 min.
Raul - O Início, O Fim e O Meio tenta abarcar toda a vida do cantor e compositor Raul Seixas, desde sua infância em Salvador, como membro do "Elvis Rock Clube", o início de carreira com Os Panteras, seus parceiros musicais desde Paulo Coelho à Marcelo Nova, suas quatro mulheres e três filhas, sua empregada fiel, sua família, as drogas, a bebida e sua doença. Tudo isso intercalado com diversas músicas, todos os seus principais sucessos estão contemplados com alguns acordes, e depoimentos diversos. Os mais divertidos são dos amigos de infância, companheiros do Clube do Elvis, repetindo músicas e passos do rei do rock e relembrando a paixão de Raul tanto por este quanto pelo Rei do Baião, Luiz Gonzaga. Não por acaso, o primeiro sucesso nacional do cantor foi "Let Me Sing, Let Me Sing" que mistura rock'n'roll com baião com um talento único.
Walter Cavalho fez uma pesquisa extensa, colheu depoimentos na Bahia, no Rio de Janeiro, em São Paulo, nos Estados Unidos, onde estão parte das mulheres de Raul e em Genebra, onde está Paulo Coelho. Ouviu a todos, menos sua primeira esposa, que prefere não falar no assunto. Ainda assim, está representada por uma carta lida por sua filha via Skype. Ouviu também seus parceiros, produtores musicais e familiares. Além de fãs famosos, como Pedro Bial, que dá um depoimento empolgado sobre o ídolo. Há também alguns estranhos no ninho, como Daniel Oliveira que aparece em uma única cena sem sentido para falar da fonética do nome Raul. Caetano Veloso que aparece como se fosse para dar um respaldo ao roqueiro, o que não era necessário. E Zé Ramalho, que surge em nossa tela e infelizmente não abre a boca para dizer nada. Destaque para o sempre inteligente Tom Zé e para o fã Sylvio Passos que conviveu com o ídolo e tem várias relíquias do mesmo.
Mas, faltou o fã anônimo. Tirando um cover que surge e some do nada, além de cenas de arquivo rápidas da passeata em São Paulo e do enterro de Raul Seixas, essa legião de fãs que cultuam o ídolo como este não queria, já que era um “guru que não queria seguidores”, fica de fora do documentário. A escolha de Walter Carvalho é mesmo pelo homem e não pelo mito. Mas, em um documentário que procurou abarcar tudo, essa acabou sendo uma falta sentida. Nem que fosse para questionar tamanha idolatria por um homem que pregou a libertação delas. Raul sempre quis demonstrar em suas músicas a capacidade humana de pensar e ir além. Mesmo que afirmasse que não fazia música de protesto, ele protestou e muito contra o regime vigente, contra o marasmo, contra a hipocrisia. A música Ouro de Tolo, por exemplo, ressaltada em um bom pedaço do filme, é um hino a não-acomodação e a não-conformidade.
O filme também dá um bom espaço à polêmica Sociedade Alternativa, inspirada nos escritos do ocultista Aleister Crowley e que foi chamada de culto ao demônio, inclusive por um dos seus membros, Paulo Coelho, no livro As Valkírias. Walter Carvalho vai buscar os líderes dessa seita religiosa que explica o que é o verdadeiro diabo que eles cultuam, o anjo caído que trouxe a luz aos homens, e não a maldade que prega a Igreja. E é impressionante como eles, ainda caracterizados, seguem esses preceitos. Carvalho é perspicaz ao fazer a montagem em paralelo deles e de Paulo Coelho que realmente considera aquela uma época nefasta em sua vida. É curioso e irônico o momento em que ficamos sabendo que os líderes ainda consideram Coelho um membro porque nunca pediu oficialmente seu juramento de volta.
Paulo Coelho, por sinal, acaba tangenciando boa parte do documentário, seja pelos sucessos que criou em parceria com Raul, ou pelo fato de lhe apresentar as drogas, já que, antes de conhecê-lo, Raul era "careta", ou ainda por essa rixa que se formou quando ele virou "guru" exotérico, criticando boa parte de suas atitudes anteriores, sendo considerado por muitos fãs como um traidor. Cria-se então, a preferência por outro parceiro musical, Cláudio Roberto, co-autor de Maluco Beleza. E mais uma vez, Walter Carvalho faz uma montagem em paralelo para tentar forçar a resposta de quem foi o principal parceiro de Raul, colocando inclusive lamentáveis inserções de uma briga de galo. Mas, não podemos deixar de falar da inusitada situação da mosca que invade a entrevista de Coelho, e este, com bastante humor, chama a atenção de que "em Genebra não tem moscas", mas Raul tinha que se fazer presente.
Há ainda as imagens de arquivo que nos deixam sempre próximos a Raul. Seja em arquivos caseiros, shows, entrevistas ou programas de televisão, o cantor e compositor pode dar sua versão da história em diversos momentos. Tornando o filme mais atrativo para os fãs que podem matar saudades e se emocionar com cada manifestação em tela. O roteiro de Leonardo Gudel e a montagem de Pablo Ribeiro segue a fórmula cartesiana conhecida de intercalar depoimentos, imagens de arquivo e trilhas sonoras que marcaram a carreira do cantor. Isso sem falar de cenas iniciais de filmes de Elvis Presley. Mas, tem bons momentos de inspiração como o início clipado, as montagens em paralelo mostrando várias visões de um mesmo tema, como os já citados de Paulo Coelho ou de suas ex-companheiras, ou cenas poéticas como os ex-integrantes d'Os Panteras tocando por trás de um pano com as fotos antigas e a voz de Raul.
A fórmula conhecida funciona e Walter Carvalho acaba agradando a todos que estão acostumados a esse formato já tão utilizado para documentários biográficos. Confesso que isso me incomoda um pouco. Parece que o Brasil estacionou nesse formato da década de sessenta, tão explorado pela televisão. Tirando João Jardim e Eduardo Coutinho, parece que não temos experimentações da linguagem que a tornam mais dinâmica e interessante. Ainda mais quando temos documentários musicais. Poucos exemplos fogem a isso como Coração Vagabundo de Fernando Grostein Andrade. Poderíamos nos inspirar um pouco mais com exemplos próximos como o trabalho do suiço Georges Gachot em Rio Sonata, sobre Nana Caymmi ou Música é Perfume sobre Maria Bethânia.
Mas, isso é apenas um parêntese de considerações pessoais sobre alguém que estuda documentários e gostaria de ver avanços dessa linguagem por aqui. Ainda mais em um filme sobre um homem que foi uma metamorfose ambulante. Apesar de tradicional, o filme de Walter Carvalho é bom sim. Cumpre seu papel de trazer Raul Seixas para nossas telas, em uma homenagem digna que informa, inspira e levanta curiosidades. Acima de tudo, empolga, principalmente pelo talento do músico e sua imensa obra. Por piada ou por emoção, vai ter muita gente gritando nos cinemas: "Toca Raul"! (sem o uivo, por favor).
Raul - O Início, O Fim e O Meio
Direção: Walter Carvalho
Roteiro: Leonardo Gudel
Duração: 120 min.
Amanda Aouad
Crítica afiliada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), é doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Poscom / UFBA) e especialista em Cinema pela UCSal. Roteirista profissional desde 2005, é co-criadora do projeto A Guardiã, além da equipe do Núcleo Anima Bahia sendo roteirista de séries como "Turma da Harmonia", "Bill, o Touro" e "Tadinha". É ainda professora dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unifacs e da Uniceusa. Atualmente, faz parte da diretoria da Abraccine como secretária geral.
Raul - O Início, O Fim e O Meio
2012-03-22T08:30:00-03:00
Amanda Aouad
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