A Revolução dos Bichos (com spoilers)
Interrompo a série de casais do cinema para um texto inspirado no que estamos vivenciando no país. Não vou fazer um texto político, manifesto ou análise sobre a situação em si, já que não quero tirar o foco do site. Mas, trago aqui reflexões através do cinema e do livro em que esse filme se inspirou. Falarei aqui de detalhes da trama, incluindo seu final, então, se você ainda não conhece, vá ler o livro e ver o filme antes.
Como já falei na crítica sobre 1984, George Orwell era um socialista democrata. Suas ideias não eram contra o socialismo, ou sobre a divisão igualitária, mas contra o autoritarismo, principalmente baseado no que ele viu o Governo de Stalin fazer na antiga União Soviética. Um texto tão crítico como A Revolução dos Bichos, no entanto, era um prato cheio para o capitalismo querer reverter as coisas, mostrando que a ideologia dos iguais está sempre falha. E é nisso que se encontra o maior problema dessa adaptação para a televisão de 1999, dirigida por John Stepheson, distorcer a obra original.
Nem vou entrar no mérito técnico. É uma produção televisiva, e visivelmente aquém do que a tecnologia, na virada do século já era capaz. Como boa parte do filme é construída com base em animais falantes, fica difícil o resultado ser a contento, ainda mais em uma época acostumada a CGI. Destaque, no entanto, para a presença do ator Pete Postlethwaite, que faz o fazendeiro Jones e também a voz do burro Benjamin. Sempre com uma boa interpretação, ele torna o fazendeiro ainda mais desprezível.
Mas, o problema maior do filme não está na técnica. É visível que a produção distorceu a obra de George Orwell para valorizar o capitalismo. Principalmente por seu final. O final do livro é uma das falas mais impactantes da obras: "e não se podia mais distinguir os porcos dos homens". Fala essa que é inserida displicentemente no meio do filme, que traz ainda algumas reviravoltas, inclusive a chegada dos "novos donos da fazenda", que dão esperanças aos animais que sobreviveram de uma relação pacífica. Claro que os novos donos são o protótipo da família feliz norte-americana, é bom pontuar.
O filme coloca também um narrador-personagem, a cachorrinha Jessie, que tem pouquíssima participação no livro. Além de ser um bichinho fofo, e cães serem mais fáceis de treinar para as cenas que exigem um pouco mais de "interpretação". O cão é o melhor amigo do homem. Então, seguindo o ponto de vista desse personagem, é óbvio que o animalismo está fadado ao fracasso. Vemos as injustiças através dela. E o enquadramento é sempre um fato importante naquilo que iremos pensar sobre determinado assunto, que é o que os porcos também fazem ao distorcer as ideias do Major.
Porque a genialidade de A Revolução dos Bichos está exatamente nesse viés. De mostrar os pontos de vista de uma revolução aparentemente popular. A partir do sonho do Major, um porco velho e sábio, os animais tomam a fazenda onde vivem, expulsam os seres-humanos e instalam o animalismo, que está pautado em sete mandamentos bem definidos:
1. Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo.
2. Qualquer coisa que ande sobre quatro pernas, ou tenha asas, é amigo.
3. Nenhum animal usará roupas.
4. Nenhum animal dormirá em camas.
5. Nenhum animal beberá álcool.
6. Nenhum animal matará outro animal.
7. Todos os animais são iguais.
Ou seja, tomem o poder, mas mantenham sua essência. Vocês são bichos, não homens. Não se corrompam, não ajam como eles. Porém, o que George Orwell nos alerta ao criar os porcos é que o poder pode corromper o maior dos revolucionários. Tanto que coloca no nome do antagonista da história de Napoleão. Uma alusão a Stalin, claro, seu desafeto e responsável pela destruição do sonho em sua mente. Mas, também uma referência ao jovem monarca francês que terminou a Revolução Francesa com um golpe de estado e se tornou um dos maiores ditadores da história mundial. Identificando claramente Napoleão como Stalin, Bola-de-Neve só pode ser Leon Trótski, seu principal rival, que brigou pelo poder após a morte de Lenin, que na história dos bichos estaria representado pelo velho Major.
E o povo, ou melhor, o resto dos bichos da fazenda, são apenas a massa de manobra nas mãos dos seus representantes. Seja os opressores seres humanos, ou os "também" do povo, porcos. E é interessante como os cães são os guardas, a representação da força policial, o exército que faz cumprir a lei de Napoleão. Porque aos poucos, ao pegar gosto pelo poder, Napoleão vai distorcendo os princípios. Expulsa Bola-de-Neve da fazenda, acusando-o de traidor e começa a criar privilégios para os porcos. Começa com coisas simples como o direito de beber leite e comer maçãs e depois começa a alterar as leis do manifesto:
4. Nenhum animal dormirá em cama com lençóis.
5. Nenhum animal beberá álcool em excesso.
6. Nenhum animal matará outro animal sem motivo.
7. Todos os animais são iguais mas alguns são mais iguais que os outros.
E nisso, A Revolução dos Bichos perde o sentido. Deixam de ser escravos dos homens, para serem escravos dos porcos. Mas, não é possível mais distinguir um do outro, como percebe a égua Quitéria. E nisso está o grande perigo de uma revolução, o que vem depois. Para que o povo tome realmente o poder, é preciso algo mais do que uma minoria que o represente. É difícil, para que a ordem se estabeleça sempre precisaremos de governantes e governados. O contrário disso, só o Anarquismo que sucumbiu em si mesmo enquanto ideologia pelo utopismo extremo de suas ideias. O auto-governo só seria possível em pessoas extremamente conscientes, responsáveis e honestas. E bastava uma não ser assim, para ruir qualquer possibilidade de dar certo.
Então, George Orwell e A Revolução dos Bichos não propõe a Anarquia. É preciso ter um governo estabelecido. É preciso seguir líderes. Porém, não através do governo totalitário. Muito menos pela submissão através da contenção de informações. Um bom líder precisa, antes de tudo, saber educar. Precisa ter governados conscientes. E não manipulados. E isso, só se consegue com educação. Educação essa que o governo militar brasileiro "sabiamente" destruiu em 20 anos de ditadura. A economia da informação, no entanto, começa a ruir com a força da internet, mesmo que "governada" pelo Google. Não precisamos ser mais Quitérias observando da janela os porcos e homens confraternizando. Podemos compartilhar as ideias e apontar os porcos. Resta saber se vamos conseguir diferenciá-los nas urnas.
A Revolução dos Bichos (Animal Farm, 1999 / EUA)
Direção: John Stepheson
Roteiro:Director: Alan Janes
Com: Pete Postlethwaite, Alan Stanford, Caroline Gray, Gail Fitzpatrick, Julia Ormond (voz), Kelsey Grammer (voz), Ian Holm (voz), Julia Louis-Dreyfus (voz)
Duração: 91 min.
Como já falei na crítica sobre 1984, George Orwell era um socialista democrata. Suas ideias não eram contra o socialismo, ou sobre a divisão igualitária, mas contra o autoritarismo, principalmente baseado no que ele viu o Governo de Stalin fazer na antiga União Soviética. Um texto tão crítico como A Revolução dos Bichos, no entanto, era um prato cheio para o capitalismo querer reverter as coisas, mostrando que a ideologia dos iguais está sempre falha. E é nisso que se encontra o maior problema dessa adaptação para a televisão de 1999, dirigida por John Stepheson, distorcer a obra original.
Nem vou entrar no mérito técnico. É uma produção televisiva, e visivelmente aquém do que a tecnologia, na virada do século já era capaz. Como boa parte do filme é construída com base em animais falantes, fica difícil o resultado ser a contento, ainda mais em uma época acostumada a CGI. Destaque, no entanto, para a presença do ator Pete Postlethwaite, que faz o fazendeiro Jones e também a voz do burro Benjamin. Sempre com uma boa interpretação, ele torna o fazendeiro ainda mais desprezível.
Mas, o problema maior do filme não está na técnica. É visível que a produção distorceu a obra de George Orwell para valorizar o capitalismo. Principalmente por seu final. O final do livro é uma das falas mais impactantes da obras: "e não se podia mais distinguir os porcos dos homens". Fala essa que é inserida displicentemente no meio do filme, que traz ainda algumas reviravoltas, inclusive a chegada dos "novos donos da fazenda", que dão esperanças aos animais que sobreviveram de uma relação pacífica. Claro que os novos donos são o protótipo da família feliz norte-americana, é bom pontuar.
O filme coloca também um narrador-personagem, a cachorrinha Jessie, que tem pouquíssima participação no livro. Além de ser um bichinho fofo, e cães serem mais fáceis de treinar para as cenas que exigem um pouco mais de "interpretação". O cão é o melhor amigo do homem. Então, seguindo o ponto de vista desse personagem, é óbvio que o animalismo está fadado ao fracasso. Vemos as injustiças através dela. E o enquadramento é sempre um fato importante naquilo que iremos pensar sobre determinado assunto, que é o que os porcos também fazem ao distorcer as ideias do Major.
Porque a genialidade de A Revolução dos Bichos está exatamente nesse viés. De mostrar os pontos de vista de uma revolução aparentemente popular. A partir do sonho do Major, um porco velho e sábio, os animais tomam a fazenda onde vivem, expulsam os seres-humanos e instalam o animalismo, que está pautado em sete mandamentos bem definidos:
1. Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo.
2. Qualquer coisa que ande sobre quatro pernas, ou tenha asas, é amigo.
3. Nenhum animal usará roupas.
4. Nenhum animal dormirá em camas.
5. Nenhum animal beberá álcool.
6. Nenhum animal matará outro animal.
7. Todos os animais são iguais.
Ou seja, tomem o poder, mas mantenham sua essência. Vocês são bichos, não homens. Não se corrompam, não ajam como eles. Porém, o que George Orwell nos alerta ao criar os porcos é que o poder pode corromper o maior dos revolucionários. Tanto que coloca no nome do antagonista da história de Napoleão. Uma alusão a Stalin, claro, seu desafeto e responsável pela destruição do sonho em sua mente. Mas, também uma referência ao jovem monarca francês que terminou a Revolução Francesa com um golpe de estado e se tornou um dos maiores ditadores da história mundial. Identificando claramente Napoleão como Stalin, Bola-de-Neve só pode ser Leon Trótski, seu principal rival, que brigou pelo poder após a morte de Lenin, que na história dos bichos estaria representado pelo velho Major.
E o povo, ou melhor, o resto dos bichos da fazenda, são apenas a massa de manobra nas mãos dos seus representantes. Seja os opressores seres humanos, ou os "também" do povo, porcos. E é interessante como os cães são os guardas, a representação da força policial, o exército que faz cumprir a lei de Napoleão. Porque aos poucos, ao pegar gosto pelo poder, Napoleão vai distorcendo os princípios. Expulsa Bola-de-Neve da fazenda, acusando-o de traidor e começa a criar privilégios para os porcos. Começa com coisas simples como o direito de beber leite e comer maçãs e depois começa a alterar as leis do manifesto:
4. Nenhum animal dormirá em cama com lençóis.
5. Nenhum animal beberá álcool em excesso.
6. Nenhum animal matará outro animal sem motivo.
7. Todos os animais são iguais mas alguns são mais iguais que os outros.
E nisso, A Revolução dos Bichos perde o sentido. Deixam de ser escravos dos homens, para serem escravos dos porcos. Mas, não é possível mais distinguir um do outro, como percebe a égua Quitéria. E nisso está o grande perigo de uma revolução, o que vem depois. Para que o povo tome realmente o poder, é preciso algo mais do que uma minoria que o represente. É difícil, para que a ordem se estabeleça sempre precisaremos de governantes e governados. O contrário disso, só o Anarquismo que sucumbiu em si mesmo enquanto ideologia pelo utopismo extremo de suas ideias. O auto-governo só seria possível em pessoas extremamente conscientes, responsáveis e honestas. E bastava uma não ser assim, para ruir qualquer possibilidade de dar certo.
Então, George Orwell e A Revolução dos Bichos não propõe a Anarquia. É preciso ter um governo estabelecido. É preciso seguir líderes. Porém, não através do governo totalitário. Muito menos pela submissão através da contenção de informações. Um bom líder precisa, antes de tudo, saber educar. Precisa ter governados conscientes. E não manipulados. E isso, só se consegue com educação. Educação essa que o governo militar brasileiro "sabiamente" destruiu em 20 anos de ditadura. A economia da informação, no entanto, começa a ruir com a força da internet, mesmo que "governada" pelo Google. Não precisamos ser mais Quitérias observando da janela os porcos e homens confraternizando. Podemos compartilhar as ideias e apontar os porcos. Resta saber se vamos conseguir diferenciá-los nas urnas.
A Revolução dos Bichos (Animal Farm, 1999 / EUA)
Direção: John Stepheson
Roteiro:Director: Alan Janes
Com: Pete Postlethwaite, Alan Stanford, Caroline Gray, Gail Fitzpatrick, Julia Ormond (voz), Kelsey Grammer (voz), Ian Holm (voz), Julia Louis-Dreyfus (voz)
Duração: 91 min.
Amanda Aouad
Crítica afiliada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), é doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Poscom / UFBA) e especialista em Cinema pela UCSal. Roteirista profissional desde 2005, é co-criadora do projeto A Guardiã, além da equipe do Núcleo Anima Bahia sendo roteirista de séries como "Turma da Harmonia", "Bill, o Touro" e "Tadinha". É ainda professora dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unifacs e da Uniceusa. Atualmente, faz parte da diretoria da Abraccine como secretária geral.
A Revolução dos Bichos (com spoilers)
2013-06-22T08:00:00-03:00
Amanda Aouad
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