Malu
Encarar o seu primeiro longa-metragem não é fácil, ainda mais quando esse projeto carrega tamanha carga emocional de uma obra sobre sua mãe. Não satisfeito com essa tarefa, Pedro Freire não nos traz a tela uma homenagem aos tempos de glória da atriz Malu Fontes. Ao contrário, ele nos convida a adentrar o íntimo familiar de seus momentos finais, não menos intensos, que resulta em uma construção catártica independentemente de você saber algo dessa história.
A trama narra a rotina de Malu, uma atriz desempregada que vive com a mãe em uma comunidade no subúrbio do Rio de Janeiro e sonha em reformar o local, construindo um espaço cultural com direito a um teatro no telhado. Nesse cenário, tem como único amigo, o artista Tibira, ponte para os tempos áureos, com quem compartilha lembranças diversas do teatro político e dos trabalhos já realizados.
A chegada da filha, também atriz, vinda de uma temporada em Paris é o mote para construir uma triangulação de conflitos entre gerações. Malu, em seu sonho delirante, Lili (a mãe), com sua postura conservadora, e Joana (a filha), em seus planos mais palpáveis em busca de equilíbrio. A dinâmica das três é um eterno cabo de guerra entre o amor e o ódio. Capaz de nos entregar cenas intensas de brigas verbais ou mesmo físicas, como quando a mãe rasga o rosto de Malu com a unha. E também momentos de ternura e cuidado.
Por mais paradoxal que pareça, essa estrutura é um retrato fiel de muitas famílias que tem pensamentos contrastantes. É uma construção quase inexplicável do amor consanguíneo, da dor e repulsa pelas divergências de pensamentos. Mas também da carência e necessidade de acolhimento familiar. Como um filho não assumido que busca de alguma maneira o pedido de perdão dos pais, por exemplo. Malu constrói de uma maneira bastante intensa, como na cena em que Dona Lili narra os acontecimentos de sua família após a morte da mãe.
Esse jogo complexo só é possível pela entrega das três atrizes que dão vida a essas personagens. Yara Novaes incorpora Malu com intensidade e graça, nos fazendo amar e odiar aquela mulher em tela. Compreendendo o fascínio que ela causa naqueles que a conhecem apenas pelo externo e a angústia de estar ali convivendo com sua intimidade. Não menos intensas estão Carol Duarte como Joana, que defende bem essa jovem assombrada entre a imagem de uma mãe incrível, com situações como a que encontra a avó. Assim como Juliana Carneiro da Cunha, que nos entrega uma Lili cruel em algum nível, em nome de um conservadorismo que nem ela entende, ao mesmo tempo que é capaz de protagonizar momentos fofos.
O filme se passa quase todo em uma locação que também reforça o caos interno de suas personagens. Aquela casa inacabada, com problemas diversos de reparos necessários. Ausência de estrutura como o chão de barro e as improvisações diversas é um pouco do que acontece dentro de Malu. Sempre esperando o momento em que poderá reformar tudo, construir seu teatro e resgatar momentos de sucesso e prazer que a arte já lhe proporcionou.
Malu é um retrato corajoso de um filho que, de alguma maneira, faz as pazes com a memória de sua mãe. Mas é também um convite para encararmos nossos próprios fantasmas, estereótipos e preconceitos. Pedro Freire não tem pudores para lidar com temas polêmicos. Poderia ter mais cuidado em alguns momentos, mas não deixa de ser admirável sua coragem e capacidade de transformar dor em arte.
Malu (Brasil, 2024)
Direção: Pedro Freire
Roteiro: Pedro Freire
Com: Yara Novaes, Carol Duarte, Juliana Carneiro da Cunha, Átila Bee
Duração: 100 min.

Amanda Aouad
Crítica afiliada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), é doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Poscom / UFBA) e especialista em Cinema pela UCSal. Roteirista profissional desde 2005, é co-criadora do projeto A Guardiã, além da equipe do Núcleo Anima Bahia sendo roteirista de séries como "Turma da Harmonia", "Bill, o Touro" e "Tadinha". É ainda professora dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unifacs e da Uniceusa. Atualmente, faz parte da diretoria da Abraccine como secretária geral.
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