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Pixote: A Lei do Mais Fraco
Pixote: A Lei do Mais Fraco
Dia 19 de junho, quando celebramos o Dia do Cinema Brasileiro, é impossível não revisitar certos filmes que, além de terem marcado época, continuam a reverberar com força e dor. Pixote: A Lei do Mais Fraco (1980), de Hector Babenco, é uma dessas obras que não apenas sobreviveu ao tempo — ela o atravessou com feridas abertas, sempre prontas a sangrar outra vez diante de cada nova injustiça cometida contra as infâncias negligenciadas de um Brasil que insiste em marginalizar os seus mais frágeis.
Assistir Pixote mais de 40 anos depois de seu lançamento não é apenas uma experiência cinematográfica — é um exercício ético. O filme é uma denúncia em forma de ficção, com o sangue da realidade escorrendo pelas bordas do quadro. Baseado no livro A Infância dos Mortos, de José Louzeiro, o longa abandona o conforto das narrativas redentoras para se afundar, sem anestesia, no cotidiano brutal de crianças descartadas pelo sistema. O protagonista, Pixote, é interpretado por Fernando Ramos da Silva, um garoto de rua que nunca havia atuado. Sua performance, ou melhor, sua presença não apenas desafia os padrões convencionais de atuação: ela rasga a tela com autenticidade crua. Ramos da Silva não interpreta Pixote. Ele é Pixote. E esse é o elogio mais aterrador que se pode fazer ao filme.
Hector Babenco, cineasta argentino naturalizado brasileiro, dirige com a precisão de quem entende que a câmera é também um instrumento de denúncia. Ele mira onde dói: nos olhos vazios dos meninos espancados em reformatórios, nas mãos que empunham armas antes mesmo de saber escrever o próprio nome, nos corpos infantis vendidos para o prazer de adultos hipócritas. A sua direção é ao mesmo tempo sóbria e impiedosa. Babenco opta por um estilo que flerta com o neorrealismo italiano, mas seu olhar é mais violento, mais seco, menos poético. Ele nos obriga a olhar para o que geralmente se esconde sob a maquiagem da ficção: a falência do Estado, a indiferença social, a tragédia da exclusão.
Um dos momentos mais potentes do filme acontece na estação rodoviária, quando Pixote, após testemunhar a morte de um companheiro, chora sozinho enquanto observa os passageiros apressados de um Brasil que simplesmente não o vê. Essa cena, silenciosa e devastadora, resume o filme inteiro: o menino invisível, perdido num país que nunca lhe ofereceu escolha. É um dos raros instantes de vulnerabilidade emocional do personagem, que até então já havia traficado drogas, presenciado assassinatos e recorrido à violência como forma de sobrevivência. É ali que o espectador — se ainda tiver coração — se rende.
O elenco de apoio é igualmente notável. Marília Pêra, no papel da prostituta Sueli, entrega uma performance complexa e desconcertante. Ela transita entre a brutalidade e a ternura, acolhendo Pixote como se fosse seu filho, apenas para, em seguida, empurrá-lo de volta para as ruas. Essa ambiguidade moral é uma das maiores qualidades do filme: ninguém é puro, ninguém é vilão. São todos sobreviventes em um sistema falido.
Mas Pixote também levanta dilemas éticos fora da tela. O destino trágico de Fernando Ramos da Silva, morto pela polícia em 1987 aos 19 anos, é um espelho incômodo da própria narrativa do filme. Após o sucesso da obra, o garoto não encontrou espaço no mercado audiovisual. Voltou para a pobreza, e dela jamais saiu. O que Babenco denunciava na ficção, a realidade reafirmou com crueldade. A escolha de atores não profissionais, embora traga autenticidade, também expõe vulnerabilidades, principalmente quando não há acompanhamento ou proteção pós-filme. Isso não diminui a força do longa, mas obriga a reflexão sobre o limite entre a arte e a exploração.
Visualmente, o filme opta por uma paleta suja, naturalista, com iluminação crua que parece reproduzir a precariedade das locações. Os planos são muitas vezes estáticos, como se a câmera estivesse mais preocupada em registrar do que em compor. Essa decisão narrativa, longe de ser uma limitação técnica, reforça a sensação documental que perpassa todo o projeto. A trilha sonora é praticamente inexistente, e o silêncio se transforma em ferramenta dramática. A ausência de música enfatiza a aridez do mundo em que esses meninos habitam. Não há lirismo possível onde não há infância.
Se há um ponto a ser questionado em Pixote, talvez seja a forma como a câmera, por vezes, insiste demais no sofrimento, tornando-se voyeurística, como se o filme precisasse reafirmar a todo momento o horror que já se impõe. Contudo, diferentemente de tantos filmes que se alimentam do sofrimento alheio para alcançar prestígio artístico, Pixote nunca parece esquecer de onde fala. Ele não é um filme feito sobre os pobres — é um filme feito com eles, ao lado deles. E isso muda tudo.
No Dia do Cinema Brasileiro, relembrar Pixote: A Lei do Mais Fraco é mais do que um exercício de memória. É um chamado. O Brasil de 1980, miserável e violento, não desapareceu — ele apenas mudou de figurino. O menino Pixote, de olhos tristes e sem rumo, ainda perambula pelas nossas ruas, esperando que finalmente alguém o veja.
E que não seja tarde demais.
Pixote: A Lei do Mais Fraco (1980 / Brasil)
Direção: Héctor Babenco
Roteiro: Héctor Babenco, Jorge Durán
Com: Fernando Ramos da Silva, Marília Pêra, Jorge Julião, Gilberto Moura, Edilson Lino, Jardel Filho, Rubens de Falco, Elke Maravilha, Tony Tornado, Beatriz Segall
Duração: 128 min.

Ari Cabral
Bacharel em Publicidade e Propaganda, profissional desde 2000, especialista em tratamento de imagem e direção de arte. Com experiência também em redes sociais, edição de vídeo e animação, fez ainda um curso de crítica cinematográfica ministrado por Pablo Villaça. Cinéfilo, aprendeu a ser notívago assistindo TV de madrugada, o único espaço para filmes legendados na TV aberta.
Pixote: A Lei do Mais Fraco
2025-06-20T08:30:00-03:00
Ari Cabral
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