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Até a Última Gota
Até a Última Gota
Desde a primeira cena, Até a Última Gota deixa claro o que quer ser: um mergulho sufocante num dia que parece durar uma vida inteira, onde a tensão psicológica se acumula a cada instante. Taraji P. Henson interpreta Janiyah, uma mãe solo em colapso, levada ao limite absoluto até transformar o desespero em um impasse armado dentro de um banco. A premissa é potente e, durante boa parte do filme, funciona. Mas a maneira como Tyler Perry conduz essa história oscila entre o profundo e o excessivo, como se ele nunca tivesse certeza se quer emocionar ou chocar. E aí o resultado, embora impactante, é também irregular.
O que segura tudo de pé é Taraji. A entrega dela é total. Seu olhar cansado, o jeito como sua voz vacila entre raiva e exaustão, a forma como o corpo dela parece carregar anos de injustiça em cada gesto... tudo é verdadeiro. É uma performance que carrega o filme nas costas e justifica cada minuto. Sherri Shepherd também traz calor humano e credibilidade à narrativa. E Teyana Taylor surpreende como a policial dividida entre o protocolo e a compaixão. O elenco, aliás, parece ter sido escolhido com precisão cirúrgica. Mesmo personagens menores ganham dimensão graças aos atores, que conseguem dar densidade a um roteiro que, por vezes, deixa a desejar.
Tyler Perry tenta ir além da fórmula que costuma usar. Há um esforço real para trazer mais nuance, mais dor cotidiana, mais peso emocional. Mas ele também carrega demais. Em apenas um dia, Janiyah perde o emprego, corre risco de despejo, precisa lidar com um hospital indiferente, enfrenta a polícia e ainda se vê à beira de um colapso nervoso. A ideia é clara: mostrar como a vida pode desabar em questão de horas quando se vive à margem. Só que o roteiro parece jogar tudo ao mesmo tempo, sem dar respiro nem ao público nem aos personagens. O excesso de acontecimentos tira um pouco da força individual de cada momento.
A direção também tem seus tropeços. Há escolhas visuais que tentam traduzir o estado emocional da protagonista — como uma chuva repentina que cai quando tudo desmorona — mas que, na prática, parecem inconstantes. Faltou um pouco mais de sutileza. Perry entrega mais impacto do que construção, mais peso do que profundidade. Para quem já conhece sua filmografia, Até a Última Gota é uma tentativa clara de ir por um caminho mais sério, mais cru, mas ainda amarrado a certos vícios narrativos do melodrama.
Os temas que o filme aborda, no entanto, são relevantes e urgentes. Há uma tentativa clara de discutir saúde mental, especialmente no contexto de mães negras que vivem sob pressão constante e sem rede de apoio. A revelação final, então, dá outra camada à história. Recontextualiza os acontecimentos e transforma o que parecia apenas um ato de desespero em um retrato doloroso de uma mulher devastada por perdas seguidas, negadas, engolidas pelo cotidiano. É um golpe forte. Talvez o momento mais honesto do filme.
Ainda assim, a maneira como esse tema é apresentado não é cuidadosa. Há momentos em que o filme parece querer avisar que está sendo profundo, em vez de simplesmente deixar o drama acontecer. A crítica social, que poderia ser costurada naturalmente ao enredo, às vezes soa como um grito, uma tentativa de garantir que ninguém perca a mensagem. Isso tira força do que poderia ser uma denúncia mais impactante.
Mas existe uma cena que representa o que Até a Última Gota consegue atingir em seu melhor momento: quando Janiyah entra no banco, coberta de chuva, com um cheque manchado de sangue na mão, arma à mostra, cercada por reféns apavorados. Ali tudo se encaixa. A atuação de Taraji está em seu ápice, a direção se alinha com o estado emocional da personagem e a câmera acompanha com proximidade. É a cena em que o filme encontra sua verdadeira potência e onde a promessa do início finalmente se cumpre.
Até a Última Gota tem falhas claras. O roteiro é pesado, o ritmo é desigual, personagens secundários não têm a mesma profundidade da protagonista e há uma tendência ao melodrama que prejudica a consistência. Mas também tem méritos evidentes. A atuação de Taraji é uma das mais intensas e honestas de sua carreira. Os temas tratados são reais, relevantes e dolorosos. E mesmo com seus excessos, o filme provoca o tipo de desconforto que pode levar à reflexão.
No contexto da carreira de Tyler Perry, Até a Última Gota representa um esforço de amadurecimento. É menos formulaico, mais arriscado e mais cru. Ainda carrega os traços de seu estilo, mas tenta usá-los de forma mais consciente, menos automática. Talvez isso não seja ainda suficiente, mas é um passo importante numa trajetória artística que, aos poucos, busca mais profundidade.
Até a Última Gota não é fácil de assistir. Dói, exaure e em alguns momentos irrita. Mas não é à toa. Há algo verdadeiro pulsando ali. E mesmo que nem sempre consiga dar conta de tudo o que propõe, o filme deixa algo que vale a pena: a sensação incômoda de que, por trás de cada gesto desesperado, há uma história que o mundo tem escolhido ignorar.
Até a Última Gota (Straw, 2025 / Estados Unidos)
Direção: Tyler Perry
Roteiro: Tyler Perry
Com: Taraji P. Henson, Sherri Shepherd, Teyana Taylor, Sinbad, Rockmond Dunbar
Duração: 108 min.

Ari Cabral
Bacharel em Publicidade e Propaganda, profissional desde 2000, especialista em tratamento de imagem e direção de arte. Com experiência também em redes sociais, edição de vídeo e animação, fez ainda um curso de crítica cinematográfica ministrado por Pablo Villaça. Cinéfilo, aprendeu a ser notívago assistindo TV de madrugada, o único espaço para filmes legendados na TV aberta.
Até a Última Gota
2025-06-30T08:30:00-03:00
Ari Cabral
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