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O Cangaceiro
O Cangaceiro
Poucos filmes carregam em seu DNA o peso de inaugurar, questionar e ao mesmo tempo mitificar um gênero cinematográfico nacional. O Cangaceiro (1953), dirigido por Lima Barreto, é um desses raros marcos. Produzido pela lendária Companhia Vera Cruz, o filme se constrói como uma espécie de faroeste brasileiro que abraça a iconografia do cangaço nordestino e a estiliza com uma ambição estética que até então era inédita no cinema brasileiro. Revisitá-lo não é apenas uma viagem nostálgica: é um exercício crítico de entender o que significou, o que permanece e o que o tempo fez questão de deixar para trás.
A trama gira em torno de Capitão Galdino (Milton Ribeiro), líder de um bando de cangaceiros que sequestra uma professora, Olívia (Marisa Prado), durante uma fuga pelo sertão. A personagem de Teodoro (Alberto Ruschel), um dos cangaceiros, logo se destaca por seu desconforto com a violência gratuita do grupo e pela crescente afeição que desenvolve pela refém. O que poderia ser uma fórmula cansada de redenção pessoal encontra aqui um inesperado frescor justamente pela ambientação nordestina e pelas tensões culturais que esse cenário evoca. Há uma pulsação regional que atravessa toda a narrativa e, mesmo que estilizada, ela se mantém viva, até nos momentos em que o roteiro, assinado por Lima Barreto em parceria com Rachel de Queiroz, tropeça em simplificações.
Milton Ribeiro como Galdino é, talvez, a alma mais potente do filme. Seu cangaceiro é selvagem, carismático e feroz, encarnando com convicção o arquétipo do fora-da-lei com um pé no mito e outro na brutalidade real do sertão. Ribeiro se impõe em cena com um magnetismo físico e vocal que resiste ao tempo. Já Alberto Ruschel, entrega um Teodoro que, apesar da boa intenção moral do personagem, se apoia demais na rigidez de um herói idealizado, com pouco espaço para ambiguidades ou camadas emocionais mais profundas. Sua transformação de cangaceiro em quase mocinho ocorre de forma abrupta e didática, o que prejudica a curva dramática e coloca sobre ele uma aura de redenção pouco orgânica.
A direção de Lima Barreto, por outro lado, é segura, vibrante e ambiciosa. Barreto mostra um domínio visual raro no cinema brasileiro da época. Há um uso expressivo da profundidade de campo, da luz e da movimentação de câmera que reflete a inspiração nos faroestes americanos, mas também aponta para algo novo, híbrido, quase experimental em alguns momentos. O trabalho com a paisagem — as vastidões áridas, os ventos do sertão, os contrastes entre sombra e sol — não é apenas decorativo: é narrativo. O sertão em O Cangaceiro não é pano de fundo, é personagem.
A trilha sonora, composta por Gabriel Migliori, também merece destaque. Ela acentua os momentos de tensão e lirismo com uma dramaticidade pontual, sem escorregar na caricatura sonora que, em produções sobre o cangaço posteriores, se tornou lugar-comum. A canção-tema “Mulher Rendeira”, usada de forma icônica, não só se tornou uma marca do filme, como ajudou a projetá-lo internacionalmente. Não à toa, o longa foi premiado no Festival de Cannes de 1953, levando o Prêmio de Melhor Filme de Aventura e Menção Honrosa pela trilha.
Mas é justamente aí que está uma das tensões do filme: seu sucesso internacional, especialmente na França, deve-se em parte a uma romantização do cangaço que faz o filme flertar com o exótico. A visão do cangaceiro como um nobre selvagem, moldado à imagem de bandidos charmosos de Hollywood, cria um distanciamento da realidade histórica nordestina. Se por um lado o filme ajudou a consolidar o cangaço como uma metáfora cinematográfica poderosa, por outro, deixou de lado as complexidades sociais e políticas que envolvem o fenômeno. É uma estilização — bela, sim, mas seletiva.
Ainda assim, há um momento no filme que sintetiza com força todo o seu potencial artístico e simbólico: a fuga de Teodoro e Olívia, atravessando o sertão sob um sol escaldante, com a trilha em crescente, os cavalos em disparada e a câmera capturando a aridez da paisagem como se ela fosse extensão da própria tensão emocional dos personagens. É cinema de gênero, mas é também cinema de atmosfera, de sensações. Uma síntese rara.
O Cangaceiro não é perfeito. Há problemas de ritmo, um certo didatismo moral e algumas atuações secundárias que hoje soam efusivas demais. A personagem de Olívia, por exemplo, é tratada mais como símbolo do que como pessoa. Mas negar a importância do filme seria um erro. Ele inaugurou um imaginário. Ele abriu as portas para que o cangaço fosse pensado em chave cinematográfica — e essa chave seria retomada com mais densidade e crueza anos depois, por cineastas como Glauber Rocha (Deus e o Diabo na Terra do Sol) e Carlos Coimbra (Lampião, o Rei do Cangaço).
Assistir a O Cangaceiro hoje é reencontrar um Brasil cinematográfico que tentava se enxergar com olhos emprestados: ora de Hollywood, ora da literatura regionalista. E mesmo nesse gesto, talvez inconsciente, de querer ser universal ao filmar o sertão como se fosse o Velho Oeste, há uma força criativa inegável. O filme transformou o cangaço em espetáculo, sim, mas ao fazer isso, pavimentou o caminho para que outros o explorassem depois.
Para quem busca entender os caminhos do cinema brasileiro, O Cangaceiro continua sendo uma parada obrigatória. Não por ser um modelo a ser repetido, mas por ser um filme que, ao seu modo, ousou ser grande, mesmo quando isso significava distorcer, romantizar e simplificar.
O Cangaceiro (1953 / Brasil)
Direção: Lima Barreto
Roteiro: Lima Barreto, Rachel de Queiroz
Com: Alberto Ruschel, Marisa Prado, Milton Ribeiro, Vanja Orico, Adoniran Barbosa, Ricardo Campos, Neusa Veras, Zé do Norte
Duração: 105 min.

Ari Cabral
Bacharel em Publicidade e Propaganda, profissional desde 2000, especialista em tratamento de imagem e direção de arte. Com experiência também em redes sociais, edição de vídeo e animação, fez ainda um curso de crítica cinematográfica ministrado por Pablo Villaça. Cinéfilo, aprendeu a ser notívago assistindo TV de madrugada, o único espaço para filmes legendados na TV aberta.
O Cangaceiro
2025-06-18T08:30:00-03:00
Ari Cabral
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