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Rio, Zona Norte
Rio, Zona Norte
Poucas obras do cinema brasileiro são tão emblemáticas e paradoxais quanto Rio, Zona Norte, filme dirigido por Nelson Pereira dos Santos em 1957 — um ano antes do pontapé oficial do Cinema Novo com Rio 40 Graus. E digo paradoxal porque ele é, ao mesmo tempo, um filme que carrega nas entranhas a estética popular de um Brasil melodramático, musical e sentimental, e também uma obra que já apontava para a virada de chave estética, política e narrativa que o próprio Nelson lideraria nos anos seguintes. Assistir hoje a Rio, Zona Norte é como visitar uma encruzilhada da história do nosso cinema, onde a tradição do drama folhetinesco se esfacela sob o peso de um realismo que se aproxima com a força do morro.
O filme narra a história de Espírito da Luz, personagem interpretado com rara sensibilidade por Grande Otelo, talvez uma de suas atuações mais honestas e pungentes. Espírito é um compositor de samba que, como tantos outros na história da música brasileira, vive às margens da fama e da fortuna. Ele vende seus sambas para intérpretes que alcançam o sucesso à sua custa. Morador do subúrbio carioca, Espírito é um homem à deriva: entre trambiques pequenos, paixões frustradas e a eterna ilusão de “estourar”, ele vai, aos poucos, sendo engolido pela cidade e pelo sistema que, enquanto se alimenta de sua criatividade, o deixa morrer à míngua.
A estrutura narrativa do filme é circular. Começa com a morte de Espírito, atropelado por um trem, numa cena poderosa, que evoca não apenas um acidente, mas a metáfora de um país que passa por cima dos seus. A partir desse momento, mergulhamos em flashbacks que nos contam sua trajetória. Esse jogo de tempo narrativo é um dos trunfos do filme: Nelson já experimentava formas menos lineares de contar uma história, com montagem e ritmo que tensionam o melodrama tradicional e o cinema documental que estava por vir.
Grande Otelo está esplêndido. Não há exagero em afirmar que sua composição de Espírito da Luz é uma das mais complexas do cinema brasileiro dos anos 50. Sua expressão carrega um cansaço genuíno, um humor trágico e um olhar que nunca é totalmente derrotado, ainda que tudo ao redor o empurre para a queda. Otelo cria um tipo humano, não uma caricatura. Ele não é só o malandro ou o sofredor, é uma figura trágica, um Sísifo negro nas favelas do Rio.
Nelson Pereira dos Santos já demonstrava, ali, o que viria a se consolidar em sua carreira: um olhar agudo sobre as contradições do Brasil. Ele filma as favelas sem fetiche, sem romantização, mas também sem transformá-las em metáforas do caos. Há um respeito por aquele espaço e pelas pessoas que o habitam. O uso de locações reais, de atores e figurantes não profissionais em diversos momentos, e a câmera muitas vezes documental, já apontam para uma estética que beberia no neorrealismo italiano, mas com uma cadência e um sotaque profundamente brasileiros.
No entanto, Rio, Zona Norte tem também suas contradições. O roteiro, assinado por Nelson, ainda carrega certos vícios do melodrama radiofônico: as falas são, às vezes, expositivas demais, e alguns personagens secundários funcionam apenas como peças de uma engrenagem narrativa. Além disso, a personagem feminina vivida por Angela Maria, a cantora famosa, é subaproveitada. Ela está ali mais como símbolo — da fama, da traição, do sucesso inalcançável — do que como pessoa. Ainda assim, sua presença funciona dentro da lógica simbólica do filme, que não deixa de operar no território do mito.
A trilha sonora, como se pode imaginar, é um dos pontos altos. Os sambas compostos por Espírito da Luz são, na verdade, composições de Zé Keti, outro nome fundamental para entender a ponte entre o samba de morro e o cinema engajado dos anos 60. Cada canção parece comentar o que vemos em cena, funcionando como espécie de tragédia grega musicada. A música não é apenas trilha: ela é parte da narrativa do filme.
Há uma cena especialmente marcante, que me acompanha desde a primeira vez que vi o filme: Espírito está num boteco, sozinho, depois de mais uma desilusão. Ele canta, quase sussurrando, um samba seu que foi gravado por outro cantor. A câmera se mantém firme, sem cortes, observando-o. É uma sequência longa, desconcertante, sem trilha externa, apenas a voz de Otelo e o som ambiente. Ali, mais do que em qualquer diálogo, entendemos quem é aquele homem, e o que foi feito dele. É a cena que concentra todo o peso simbólico do filme.
A brasilidade de Rio, Zona Norte não é de postal. É a do trem lotado, do morro encharcado de samba, do compositor explorado, da mulher que canta e parte. É o retrato de um país que transforma arte popular em lucro, mas que não valoriza o artista. E essa crítica, feita em 1957, ainda encontra eco hoje. Nelson Pereira dos Santos enxergava o Brasil não como uma paisagem, mas como um drama humano em constante tensão.
Não é um filme perfeito, mas talvez justamente por isso seja tão importante. Carrega consigo as marcas de uma transição: entre o rádio e o cinema, entre o melodrama e o realismo, entre o artista popular e o autor político. Rio, Zona Norte é, como o samba que narra, um lamento ritmado. Uma canção triste, mas que se recusa a desaparecer em silêncio.
Rio, Zona Norte (1957 / Brasil)
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Roteiro: Nelson Pereira dos Santos
Com: Grande Otelo, Jece Valadão, Paulo Goulart, Ângela Maria, Zé Keti
Duração: 90 min.

Ari Cabral
Bacharel em Publicidade e Propaganda, profissional desde 2000, especialista em tratamento de imagem e direção de arte. Com experiência também em redes sociais, edição de vídeo e animação, fez ainda um curso de crítica cinematográfica ministrado por Pablo Villaça. Cinéfilo, aprendeu a ser notívago assistindo TV de madrugada, o único espaço para filmes legendados na TV aberta.
Rio, Zona Norte
2025-06-25T08:30:00-03:00
Ari Cabral
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