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Super Quem? Heróis por Acidente
Super Quem? Heróis por Acidente
O cinema francês sempre teve um talento especial para rir de si mesmo e dos outros. Desde as comédias pastelão de Louis de Funès até os jogos metalinguísticos de Quentin Dupieux, a tradição da sátira corre no sangue dos diretores do país. Super Quem? Heróis por Acidente (Super-héros malgré lui), dirigido e estrelado por Philippe Lacheau, se insere com inteligência e leveza nessa linhagem. O filme assume um risco que muitos evitam: zombar da maior mina de ouro do entretenimento contemporâneo — os filmes de super-herói — ao mesmo tempo em que tenta se comunicar com o mesmo público que consome as sagas da Marvel e da DC.
Lançado em 2022, o longa é uma paródia descarada e assumida, quase um Spaceballs dos tempos de CGI, só que com sotaque francês e piadas de ritmo acelerado. A trama gira em torno de Cédric (interpretado pelo próprio Lacheau), um ator frustrado que finalmente consegue um papel importante como "Badman", uma clara fusão entre Batman e qualquer herói sombrio do universo DC. Mas, como toda boa comédia precisa de caos, ele sofre um acidente de carro, perde a memória e acorda acreditando que é, de fato, o herói que interpreta. A partir daí, o que vemos é uma espiral absurda de confusões, ação cômica e referências que vão de Homem-Aranha a Cavaleiro das Trevas, com pitadas de Deadpool e Kick-Ass.
Philippe Lacheau desenvolve então uma obra cheia de humor físico, ritmo veloz e roteiros recheados de mal-entendidos. Seu trabalho em Super Quem? não reinventa a roda, mas ele prova, mais uma vez, que entende muito bem o timing da comédia popular e o gosto de seu público. Lacheau cria um protagonista carismático, ainda que imaturo, e seu desempenho convence pelo entusiasmo — não tanto pela sutileza. Ele se atira (às vezes literalmente) nas piadas, muitas vezes arriscando-se fisicamente em sequências de ação e acrobacias que lembram as comédias de Jackie Chan, mas com menos perigo e mais escárnio.
O elenco de apoio também contribui para o sucesso do filme. Julien Arruti e Élodie Fontan, que já trabalharam com Lacheau anteriormente, voltam com boa química e timing cômico preciso. Fontan, em especial, oferece momentos de respiro e sensibilidade em meio ao caos, ainda que seu papel seja funcional demais, preso a estereótipos de coadjuvante feminina que o próprio filme poderia ter ridicularizado. Tarek Boudali completa o grupo com seu humor físico e olhar de eterno desentendido.
A direção, embora subordinada ao estilo televisivo de comédias de esquetes, é funcional e direta. Lacheau filma com competência, alternando entre cenas de ação bem coreografadas e momentos de humor verbal e visual, sempre com uma leveza que evita o exagero gratuito. Há uma consciência estética no uso de clichês visuais dos blockbusters de heróis — slow motion, trilhas épicas, planos contra-plongée — que são repetidos até se tornarem ridículos. E esse, claro, é o ponto. O filme quer que você reconheça essas fórmulas e ria delas. Mas às vezes, o tiro sai pela culatra: ao zombar dos excessos de Hollywood, ele acaba replicando alguns dos mesmos problemas, como a previsibilidade do arco do herói e o uso excessivo de piadas fáceis que se apoiam em estereótipos já gastos.
O roteiro acerta ao brincar com o conceito de identidade e performance. A amnésia de Cédric não é apenas um recurso de comédia, mas um comentário implícito sobre o estado atual dos atores que se perdem em papéis que valem mais do que eles mesmos. Em tempos em que a Marvel dita agendas e contratos milionários, a pergunta "quem sou eu sem o traje?" ressoa com uma ironia deliciosa. Há também momentos mais sinceros de crítica à indústria: os bastidores do cinema são retratados como ambientes de vaidade e superficialidade, e o próprio herói que Cédric interpreta é construído a partir de uma colcha de retalhos de arquétipos americanos, como se o filme dissesse: “se é isso que vocês querem, então vamos exagerar”.
Um dos momentos mais marcantes — e representativos da proposta do filme — acontece quando Cédric, ainda acreditando ser o verdadeiro Badman, tenta salvar um grupo de reféns com discursos heroicos e frases de efeito retiradas de trailers. O contraste entre sua seriedade e o olhar incrédulo dos sequestradores e reféns é hilário, e o timing da cena é exemplar. É nesse instante que o filme encontra seu tom mais afiado, zombando da pompa que muitas vezes envolve a figura do super-herói e escancarando o ridículo que existe por trás de tanta grandiosidade encenada.
No entanto, Super Quem? não é um filme imune a falhas. Por vezes, o excesso de referências pesa mais do que contribui, especialmente para quem não está familiarizado com o universo Marvel/DC. O filme depende demais da cultura pop americana, o que pode enfraquecer seu alcance fora de públicos que consomem essas narrativas. Além disso, algumas piadas recicladas e gags previsíveis diluem o impacto de momentos mais criativos. A repetição de certos recursos, como quedas, erros de memória e mal-entendidos, cansa ao final do segundo ato.
Mesmo com esses tropeços, o saldo é positivo. Super Quem? Heróis por Acidente é, acima de tudo, um exercício de auto ironia. Ao invés de tentar competir com os gigantes do cinema de ação e fantasia, ele os provoca com um sorriso maroto no rosto e um roteiro afiado na mão. Lacheau prova que ainda há espaço para comédia autorreferente e sátira pop, desde que se mantenha um olhar crítico, criativo e honesto sobre o que se está parodiando. É uma homenagem irreverente ao gênero dos super-heróis, feita com humor físico, timing europeu e uma clara consciência de suas limitações.
Para quem está saturado dos filmes de heróis que se levam a sério demais, Super Quem? pode ser a pausa cômica necessária — um lembrete de que o riso, quando bem dirigido, é uma forma poderosa de crítica.
Super Quem? Heróis por Acidente (Super-héros malgré lui, 2022 / França, Bélgica)
Direção: Philippe Lacheau
Roteiro: Philippe Lacheau, Julien Arruti, Pierre Dudan, Pierre Lacheau
Com: Philippe Lacheau, Julien Arruti, Tarek Boudali, Élodie Fontan, Alice Dufour, Jean-Hugues Anglade, Amr Waked
Duração: 82 min.

Ari Cabral
Bacharel em Publicidade e Propaganda, profissional desde 2000, especialista em tratamento de imagem e direção de arte. Com experiência também em redes sociais, edição de vídeo e animação, fez ainda um curso de crítica cinematográfica ministrado por Pablo Villaça. Cinéfilo, aprendeu a ser notívago assistindo TV de madrugada, o único espaço para filmes legendados na TV aberta.
Super Quem? Heróis por Acidente
2025-06-02T08:30:00-03:00
Ari Cabral
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