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Gaga: Five Foot Two
Gaga: Five Foot Two
"Five Foot Two" é a medida da altura de Lady Gaga — exatos 1,57 metros — mas o documentário homônimo disponível na Netflix não pretende apenas reduzir a popstar ao seu tamanho físico. Pelo contrário, o título carrega uma ironia calculada: ao mostrar Gaga em sua fragilidade corporal e emocional, o filme a engrandece na sua humanidade. Dirigido por Chris Moukarbel, o longa se apresenta como um retrato íntimo da cantora no momento de transição artística mais arriscado de sua carreira — a preparação e o lançamento do álbum Joanne — mas seu valor está muito além do marketing. O que está em jogo aqui é a tentativa de desmontar, ou ao menos questionar, a máquina que fabrica divas pop.
Chris Moukarbel, que já havia trabalhado em Banksy Does New York, uma produção documental voltada para a performance artística, escolhe o caminho do cinéma vérité, um estilo que busca captar a realidade com o mínimo de intervenção possível — embora essa proposta, como sabemos, seja sempre uma ilusão parcial. A câmera o acompanha em gravações com mobilidade fluida, sem entrevistas formais, como se Gaga não estivesse posando para ser filmada. Mas, claro, estamos falando de Lady Gaga e ninguém domina o palco como ela, nem mesmo quando o palco é o seu próprio cotidiano.
É nessa tensão entre espontaneidade e encenação que o filme respira. Em vários momentos, Gaga surge com o rosto limpo, sem maquiagem, com os olhos inchados pela dor ou pelo choro. Ela lida com uma fibromialgia que a impede de dançar, que a paralisa, que a derruba no chão. A cena em que ela se contorce de dor em uma sala de fisioterapia, enquanto tenta conter o desespero, é uma das mais incômodas e reveladoras: ali, a supermulher se curva à sua condição de ser humano. Não há trilha sonora pop, nem cortes estilizados, só o som abafado da dor. É neste instante que o filme se justifica.
Mas o documentário não é apenas dor. Há também o entusiasmo quase infantil diante da avó, quando Gaga apresenta a música “Joanne” — dedicada à tia que morreu jovem e cuja ausência moldou boa parte do discurso afetivo do álbum. Esse encontro familiar traz o afeto de volta à cena. A avó ouve, se emociona e, em silêncio, aprova. Não há catarse exagerada, nem grandes frases de efeito. É justamente nessa contenção que a sequência se torna poderosa.
Há um esforço deliberado em contrastar a artista privada com a persona pública. Em um plano ela está sozinha, vulnerável, pedindo colo à assistente; no outro, diante de dezenas de câmeras, posando para fotos de lingerie ou negociando com produtores sobre a turnê. O filme não esconde o quanto Gaga controla sua imagem e está ciente do poder que possui. Mesmo nos momentos de suposta espontaneidade, há uma consciência de cena. Por isso, a proposta do documentário como “verdade absoluta” é contestável — mas talvez seja essa dubiedade o que o torna mais interessante.
A performance no intervalo do Super Bowl, exibida quase ao final do filme, funciona como clímax narrativo. Tudo foi construído para aquele momento: o sofrimento físico, os conflitos com a gravadora, as dúvidas sobre o álbum Joanne, os ensaios exaustivos. A sequência é empolgante não apenas pelo espetáculo musical, mas porque carrega o peso emocional de tudo o que foi visto antes. Quando Gaga salta no palco diante de milhões, carregando nas costas uma carreira, uma narrativa e um corpo em sofrimento, a cena adquire outra densidade. É a consagração da resistência.
Tecnicamente, Gaga: Five Foot Two aposta na câmera íntima, na iluminação naturalista e em uma montagem quase diarística. Não há uma estrutura clássica de começo, meio e fim. O filme se permite digressões, mudanças de tom, alternância entre bastidores e cenas domésticas. Essa falta de coesão pode incomodar quem espera uma narrativa linear. Em certo sentido, o longa parece mais um amontoado de momentos do que uma história bem amarrada. Mas talvez essa forma espelhe o caos da vida de Gaga — ou melhor, da vida de Stefani Joanne Angelina Germanotta, nome de batismo da estrela, que aqui tenta, ou finge tentar, escapar da sua própria máscara.
É preciso reconhecer que há momentos em que o filme resvala na autopromoção. A presença constante da equipe de maquiagem, dos figurinos cuidadosamente “casuais”, das conversas com a câmera que soam ensaiadas — tudo isso denuncia que a intimidade, aqui, é coreografada. Gaga não entrega sua vida: ela entrega uma versão dela. E essa versão, ainda que controlada, é profundamente significativa para entender os limites entre arte e persona, entre verdade e performance.
Moukarbel não é um diretor invasivo. Ele se coloca à margem, observando, confiando na força da personagem que tem diante de si. E Gaga, por sua vez, é magnética. Ela sabe seduzir a lente, mesmo quando diz estar sendo “apenas ela mesma”. O filme não explica Gaga — mas expõe sua complexidade. Não há grandes revelações nem escândalos ocultos. A surpresa está na crueza dos momentos simples: uma conversa com o pai, uma lágrima que escapa, a solidão de um camarim vazio.
Gaga: Five Foot Two talvez não funcione como um documentário jornalístico ou investigativo. Ele não desconstrói Gaga, nem a desmonta completamente. Mas abre pequenas frestas, rachaduras em uma fachada que, até então, era pura exuberância. E nessas brechas, o que escapa é uma figura muito mais rica do que a caricatura da diva performática. É uma mulher em crise, mas também no controle. Uma artista marcada pela dor, mas impulsionada por ela. Uma estrela que mede apenas cinco pés e duas polegadas — mas que carrega nas costas o peso do próprio mito.
E talvez, no fim das contas, seja isso o que o título quer dizer: reduzir Gaga à sua altura é um gesto irônico, quase provocador. O que o filme revela é que nenhuma medida física é capaz de conter a intensidade de alguém que vive entre a encenação e a verdade, entre a performance e o abismo, entre o show e o silêncio. E é nesse “entre” que reside a força de Five Foot Two.
Gaga: Five Foot Two (Gaga: Five Foot Two, 2017 / Estados Unidos)
Direção: Chris Moukarbel
Roteiro: Chris Moukarbel
Com: Lady Gaga, Joe Germanotta, Bobby Campbell, Mark Ronson, Florence Welch
Duração: 100 min.

Ari Cabral
Bacharel em Publicidade e Propaganda, profissional desde 2000, especialista em tratamento de imagem e direção de arte. Com experiência também em redes sociais, edição de vídeo e animação, fez ainda um curso de crítica cinematográfica ministrado por Pablo Villaça. Cinéfilo, aprendeu a ser notívago assistindo TV de madrugada, o único espaço para filmes legendados na TV aberta.
Gaga: Five Foot Two
2025-07-14T08:30:00-03:00
Ari Cabral
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