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Sol da Bahia
Sol da Bahia
O 2 de Julho não é apenas uma data comemorativa para a Bahia — é uma lacuna aberta na memória oficial do Brasil. Esquecida dos livros escolares e minimizada pela historiografia dominante, a data marca o verdadeiro encerramento da Guerra de Independência do Brasil, não com a assinatura de um tratado ou o gesto dramático de um imperador às margens de um riacho, mas com a luta armada e a resistência popular baiana contra as tropas portuguesas. É nesse espírito de resgate histórico e poético que o filme Sol da Bahia (2019), dirigido por Orlando Senna, se lança: não como reconstituição factual, mas como reinvenção crítica de uma memória abafada. O longa é, acima de tudo, um manifesto cinematográfico que desafia o esquecimento.
Orlando Senna, nome essencial para a história do cinema brasileiro, retorna à direção depois de um longo hiato com um projeto que carrega sua marca autoral: o híbrido entre documentário e ficção, entre ensaio e experimento, entre memória e invenção. Senna não tem interesse em construir um épico histórico tradicional. Sol da Bahia aposta em um cinema de ambiência, de ritmos, de entrelinhas. A narrativa não é conduzida por um arco dramático convencional, mas por um mosaico de cenas que reverberam entre si: imagens de cortejos populares, trechos ficcionais com personagens históricos encarnados por atores baianos, registros de ensaios, vozes que ecoam trechos de cartas e manifestos. O filme não reconstrói a guerra com armas e bandeiras, mas com palavras, rostos e paisagens.
Esse formato de documentário-ensaio, que flerta com o etnográfico e o performático, exige do espectador uma escuta atenta e uma sensibilidade afinada. A atuação do elenco, formado majoritariamente por intérpretes baianos, não se apoia no realismo dramático, mas em uma gestualidade cerimonial, quase litúrgica. É o caso, por exemplo, da figura de Maria Quitéria, apresentada não como personagem linear, mas como símbolo multifacetado da resistência feminina. Há momentos em que a performance se aproxima do teatro de rua, em outros, do teatro do oprimido, e há nisso uma coerência com a proposta de um cinema que não pretende representar, mas tensionar o real.
Senna filma com reverência, mas também com provocação. A Bahia não é retratada como cenário turístico ou mero pano de fundo, e sim como personagem viva, geográfica, ancestral. A câmera percorre ruas de pedra, vegetações secas, interiores empoeirados, sempre em busca de uma vibração histórica que ainda pulsa nas paredes, nos rostos e nos tambores. A trilha sonora, que mistura cantos populares, música instrumental e registros sonoros do cotidiano, amplia essa experiência sensorial do tempo baiano. O som não está ali para ilustrar imagens, mas para evocá-las — e, em alguns momentos, até para contradizê-las.
Não há uma catarse, um clímax, uma cena que organize todos os sentidos. Em vez disso, há uma cena que resume a proposta do longa: um cortejo silencioso de mulheres negras, em trajes brancos, caminhando lentamente pelas ruas do Pelourinho. Nenhuma fala, nenhuma legenda. Apenas a imagem. E nessa imagem, condensam-se três séculos de história: colonização, apagamento, resistência, fé.
Sol da Bahia não é um filme perfeito. Seu maior trunfo — a liberdade formal — também se transforma, em certos trechos, em obstáculo narrativo. Há momentos de dispersão, especialmente na transição entre os registros ficcionais e os blocos documentais. É fácil se perder, não por falta de conteúdo, mas por excesso de abertura. Além disso, algumas performances não encontram equilíbrio entre o simbólico e o teatral, escorregando ocasionalmente para o caricatural. Deslizes que não comprometem a potência do conjunto. Eles, inclusive, reforçam o caráter artesanal e militante da obra.
Sol da Bahia carrega suas camadas simbólicas. O sol, mais do que o do hino, é a luz reveladora de uma história apagada. O sol como calor de uma luta que não se apaga. O sol como metáfora da própria Bahia, território que arde em ancestralidade, contradições e força popular. É um filme que se recusa a ser didático, mas que ao mesmo tempo oferece material suficiente para que cada espectador construa sua própria leitura da Independência. O filme se posiciona no campo simbólico como um contra-discurso necessário — e profundamente atual. Em um país em que o passado insiste em não passar, Sol da Bahia é uma convocação poética à memória. Não à memória dos livros, mas à memória do corpo, da terra e da voz coletiva. E isso, em tempos de revisionismos e apagamentos sistemáticos, é um grande gesto político.
Sol da Bahia (Sol da Bahia, 2019 / Brasil)
Direção: Orlando Senna
Roteiro: Orlando Senna
Com: Caco Monteiro, Clara de Lima Brites Alves, Negona Irará, Gabriela Barreto, Jaime Almeida da Cunha, Moreno Matos
Duração: 73 min.

Ari Cabral
Bacharel em Publicidade e Propaganda, profissional desde 2000, especialista em tratamento de imagem e direção de arte. Com experiência também em redes sociais, edição de vídeo e animação, fez ainda um curso de crítica cinematográfica ministrado por Pablo Villaça. Cinéfilo, aprendeu a ser notívago assistindo TV de madrugada, o único espaço para filmes legendados na TV aberta.
Sol da Bahia
2025-07-02T08:30:00-03:00
Ari Cabral
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