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Eu Não Sou Seu Negro

Eu Não Sou Seu Negro - filme

Quando terminei de assistir Eu Não Sou Seu Negro, saí com dois sentimentos conflituosos: a admiração pela precisão afiada do discurso de James Baldwin trazido à vida, e a inquietação por aquilo que o filme escolheu calar. Essa tensão, entre a potência das imagens e a omissão intencional, é o que torna essa obra de Raoul Peck tão difícil de abandonar da mente.

O ponto de partida do filme é um manuscrito inacabado, Remember This House, que Baldwin planejava como memória pessoal e crítica social. A partir disso, Peck constrói não tanto uma biografia convencional do escritor, mas uma biografia de ideias: uma teia visual em que as reflexões de Baldwin se enlaçam com imagens de arquivo, fragmentos históricos e vislumbres do presente. Essa opção formal já anuncia que não nos interessa o homem, mas sua voz como instrumento de escuta crítica.

Samuel L. Jackson empresta sua voz rouca, pausada, respeitosa como um canal através do qual ouvimos Baldwin “falar” por entre os séculos. O recurso de narrar apenas com o texto de Baldwin é arriscado: há o perigo de transformá-lo em ícone estático, um monumento intocável. Mas, felizmente, Peck contrapõe isso ao uso agressivo da montagem: imagens de linchamentos e tensões raciais misturam-se a sequências da cultura pop, campanhas políticas e propagandas. Essa textura visual cria um contraponto constante entre a narrativa oficial dos EUA e a realidade que Baldwin denuncia.

Eu Não Sou Seu Negro - filme
Há cenas que cortam como respingos: ao sobrepor música doce, quase ingênua, a imagens brutais, o filme nos força a ver o abismo entre o que se vende como sonho americano e o sangue que se oculta sob seu verniz. Essa justaposição é arriscada e às vezes flerta com o gesto retórico, mas funciona como provocação: somos obrigados a confrontar a dissonância cultural que Baldwin combate.

No entanto, o filme também guarda suas ausências. Peck silencia aspectos essenciais da vida de Baldwin, sobretudo sua sexualidade. Baldwin não era apenas um pensador racial: sua condição como homem negro gay dialoga com os temas de identidade, corpo, desejo e pertencimento. Ignorar esse recorte é deixar uma parte importante de sua reflexão murchar, como se o filme preferisse um Baldwin “puro” de controvérsias para não perturbar o discurso, o que enfraquece a ambição de abarcar a totalidade de seu pensamento.

Em diferentes momentos, senti que o Baldwin que vemos no documentário se transforma quase em uma abstração: não tanto um sujeito complexo, com erros e contradições, mas um avatar idealizado para articular todas as dores negras dos EUA. Há lucidez suficiente no filme para não cair em uma hagiografia completa; ainda assim, o risco de que a ideia suplante o sujeito é real.

Mas onde o longa atinge sua força trêmula é na ponte entre passado e presente. Ao intercalar imagens históricas do movimento dos direitos civis com casos recentes de violência policial, o filme deixa claro que o racismo dos anos 1960 ainda respira entre nós. Baldwin nos alerta: esse não é um tema encerrado, mas uma ferida viva. O argumento visual é tão contundente que, por vezes, se sabe mais pela imagem do que pela palavra.

Eu Não Sou Seu Negro - filme
Quanto às atuações, o grande intérprete aqui é o próprio Baldwin. O trabalho de Samuel L. Jackson é contido, quase interior, mas permite que cada frase ecoe com peso próprio. Não há dramatizações barulhentas, não há cenas ficcionais construídas para emocionar: tudo depende da palavra de Baldwin e da montagem que a acompanha. Esse minimalismo é uma virtude: evita apelar ao sensacionalismo e confia na densidade do pensamento.

Raoul Peck, por sua vez, demonstra maturidade como cineasta ensaísta: nem sempre precioso, nem sempre didático. Sua mão aparece no modo como alinha cenas, no ritmo de cortes e nas pausas que respeitam o tempo do pensamento. Há uma oração visual em seu silêncio e, nos instantes sem narração, a imagem fala. É nesses intervalos que o filme brilha: quando menos esperamos que ele “faça algo”, ele permite que nos coloquemos no lugar de ouvintes.

Claro que nem tudo funciona perfeitamente. Há momentos em que a justaposição provoca um desequilíbrio retórico, como se o filme estivesse tentando “provar” algo com clareza excessiva. Nem todos os fragmentos visuais se conectam com elegância; alguns clipes parecem pinceladas ríspidas que estouram em brusquidão. Mas talvez isso seja proposital: Baldwin nos lembraria que a coerência total é um ideal. A realidade é muito mais fragmentada.

Para mim, um momento que resume o valor do filme é quando Baldwin, refletindo sobre o conceito de “crime negro”, contrapõe a ideia de “exceção aberrante” com o padrão estrutural de morte negra. O filme, num momento de aliança visual, cruza imagens de jovens negros presos, de tiroteios nas periferias e de discursos políticos que normalizam a criminalização racial. Essa montagem, crua e incômoda. torna palpável a proposição de Baldwin: não estamos falando de desvio, mas de lógica perversa. Ali, a tensão que atravessa todo o filme converge em algo quase visceral.

Se me pedissem para descrever, diria que Eu Não Sou Seu Negro é, sobretudo, uma obra de escuta e questionamento. Não entrega respostas confortáveis; em vez disso, reabre feridas, desafia narrativas e nos escancara o quanto carregamos, ou negamos, o fardo da história. O elogio que lhe cabe está em seu gesto dinâmico de provocar pensamento, não em seu discurso completo. É um filme que exige atenção ativa daqueles que aceitam ser perturbados.


Eu Não Sou Seu Negro (I Am Not Your Negro, 2016 / Estados Unidos, França, Bélgica)
Direção: Raoul Peck
Roteiro: James Baldwin, Raoul Peck
Com: Samuel L. Jackson (narrador)
Duração: 95 min.

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