Aproveitando o lançamento do filme Assalto ao Banco Central, vamos lembrar de outro grande assalto no país que foi para as telas de cinema. A cena não é bonita, agradável de ver ou favoravelmente emotiva. É uma cena-denúncia, que mostra o preconceito racial aliado às desigualdades sociais existentes no país. Quem não assistiu ao filme, atenção que o texto contém spoilers, não apenas desta cena, mas da trama em geral.O Assalto ao Trem Pagador foi um filme produzido em 1963, dirigido por Roberto Farias, baseado em um crime ocorrido no país em 1960. O longametragem é um retrato fiel da miséria brasileira, do preconceito, da falta de escrúpulos e da extrema pobreza da população marginalizada pela economia capitalista. Sua intenção principal é acordar a sociedade para uma mudança de atitude urgente. Bandeira comunista levantada pelo Cinema Novo e todo o movimento de esquerda da década de 60. Uma das frases mais marcantes do filme é dita pelo personagem Cachaça, interpretado por Grande Otelo: “Quando morre uma criança na favela, todo mundo devia cantar, é menos um pra se criar nessa miséria”.
O filme conta a história do assalto ao Trem da Central, que realmente ocorreu três anos antes no país. Mas o que a narrativa faz é mostrar que aqueles bandidos são na verdade homens miseráveis em busca de uma vida melhor. Tião Medonho não é o bandido e sim a vítima da situação. Por mais duro que ele fale, o filme nos leva a construir uma simpatia pelo pai zeloso, marido amoroso (mesmo que de duas famílias distintas) e homem de bem da comunidade. Mas, ao mesmo tempo, Tião é o chefe da gangue que tem a dura missão de vigiar seus companheiros para que não gastem todo o dinheiro do assalto. A regra é clara, quem gastar mais de 10%, morre nas mãos de Tião. Tudo isso, por que Nilo, o cúmplice boa pinta convence a todos de que, se gastarem demais, a polícia desconfiará deles. Mas, a regra só vale para os negros, favelados. Nilo, um homem bonito, louro de olhos azuis (interpretado por Reginaldo Faria), começa a gastar seu dinheiro sem dó. O interessante é ver que mesmo com cara de boa pinta e olhos azuis, Nilo também quer ser reconhecido. Tanto que quase é expulso de uma loja de carros importados e só, então, se decide por gastar bastante dinheiro, demonstrando a lógica de que nesse país para ser respeitado é preciso ostentar riqueza.
A cena escolhida é a mais violenta do filme. Não uma violência explícita física, mas uma violência moral. Percebendo que Nilo está gastando mais do que o combinado, e pretendia até mesmo sair do país, Tião vai cumprir o acertado, matá-lo. A cena começa com o flagra, a câmera acompanha os ajudantes de Tião pegando o material com o qual irá prender Nilo, enquanto que Tião e Tonho revistam o acusado. Interessante perceber que a montagem é construída em planos fechados, detalhes, o que cria maior expectativa, ainda mais com a música tensa em BG.
A questão é que Nilo não se faz de vítima ou implora por sua vida. Pelo contrário, explica a Tião sua lógica distorcida que é a lógica de boa parte do país: ele é branco dos olhos azuis, tem cara de quem tem carro e dinheiro, ao contrário de Tião, negro, cara de favelado. A cena começa em plano aberto enquadrando Tião de costas, Nilo e Tonho na tela. O discurso de Nilo é ininterrupto, enquanto a ação desenrola. E a cada momento que ele fala, o plano vai ficando mais fechado e longo. Um corte rápido para os ajudantes trazendo material e quinze segundos mostrando Nilo falando de forma agressiva enquanto os dois ajudantes e Tonho o amarram. Só então corta para Tião olhando para Nilo, como se ouvisse aquilo com atenção e até mesmo concordasse ser a realidade. A profundidade de campo é pequena, apenas Tião está focado e em close. Quando volta para Nilo já o enquadra também em close e com a profundidade de campo também pequena. Apenas Tonho agora circula ele, amarrando-o.
Volta para Tião que grita com os ajudantes para que andem logo, aqui vemos que ele não está sendo convencido por Nilo, quer apenas terminar tudo aquilo. A câmera acompanha então, os dois ajudantes pegando uma peça de metal pesado, plano detalhe nessa peça que é carregada até o corpo de Nilo para ser amarrada. A câmera sobe mostrando Nilo que continua seu discurso. Corta para Tião, com uma expressão irritada, ele vai se aproximando de Nilo e consequentemente da câmera. O contraplano é Nilo em plano bem fechado, gritando injúrias. Corta então, para um plano que enquadra os dois de frente, quase nariz com nariz, a música está no auge da tensão. Ouve o som de dois tiros. Nilo cai aos poucos. A agressão verbal foi forte demais. Detalhe de Nilo morto no chão, boca e olhos abertos. E apenas a voz de Tião dizendo que é para jogá-lo no rio para que os peixes comessem os "olhos azuis" de Nilo. Detalhe que como é um filme preto e branco, ficamos apenas imaginando os olhos azuis e o cabelo louro de Reginaldo Faria. E isso acaba se tornando mais um ponto de tensão. É uma cena forte, que resume um pouco do clima de denúncia do filme que, ao contrário da maioria das obras de hoje, não tem final feliz.

