
Uma pena que, em janeiro desse ano, Lúcia Rocha, a mãe de Glauber tenha falecido. Guerreira e principal divulgadora das memórias de seu filho, com certeza faria muito barulho por esses 75 anos de sua vinda à Terra. Jamais esqueço de sua imagem de indignação no filme de Fernando Belens (A Mãe), reclamando de um estranho monumento em Vitória da Conquista que seria em homenagem ao filho. Mas, se ela não pode, lembremos nós do seu mais ilustre filho.
Pensei em várias homenagens, mas como há tempos não trazia uma grande cena, resolvi unir todas as possibilidades trazendo a cena final de Deus e o Diabo na Terra do Sol. Acredito que esta pequena ópera nordestina representa bem o que foi Glauber Rocha, que vai além do diretor e sua filmografia. O que sempre me encantou no diretor foi o seu pensamento crítico e teórico, externado também em diversos textos e no programa de televisão que apresentava. A bandeira que defendia, a efervescência intelectual que muitas vezes não conseguia externar tão claramente em seus filmes, vide que muitos foram incompreendidos, como A Idade da Terra, sua última obra. Até por isso, gosto muito também de suas incursões pelos documentário, como Di Cavalcanti e, principalmente, Jorge Amado no Cinema, onde mostra, protesta e brinca com o tema.

E o final, com Corisco e Dadá sendo emboscados por Antonio das Mortes, Manuel e Rosa correndo em direção ao horizonte, mesmo com ela ficando no caminho e ele continuando sem parar é apoteótico em diversos aspectos. A começar pelos versos de Glauber transformados em poesia e vilão de Sérgio Ricardo. Todo o filme é composto como uma espécie de cordel e esta parte final é toda narrada pela música, que Glauber também misturou com as partituras de Heitor Villa-Lobos, dando essa junção operística ainda mais interessante.

Quanto Antonio das Mortes baixa a arma em vez de atirar, a música começa, apresentando o grito de Sérgio Ricardo como se fosse o do próprio matador avisando seu inimigo. "Se entrega, Corisco!". Depois vem o "Eu não me entrego não", e com ele, os primeiros tiros. A primeira parte do tiroteio é feita com o plano parado, ainda em plano geral, vemos Antonio das Mortes ir se afastando, enquanto ouvimos os tiros e a música.

A resposta de Corisco é uma das mais famosas cenas do filme. O grito com o pulo para trás, que Glauber na montagem constrói em repetição reforçando a garra do cangaceiro e dando ainda mais dinâmica à cena nos impacta. Para logo depois vir o plano da morte, com ele rodopiando e gritando "mais forte são os poderes do povo", e Dadá gritando ao fundo. É teatral, é um discurso político, é Glauber e não Corisco gritando para a tela, mas é nisso que reside a força da obra do diretor. E a narração, como boa guia, cantarola: "Mataram Corisco, balearam Dadá".

Perseguição / Sertão Vai Virar Mar
Se entrega Corisco!
Eu não me entrego não
Eu não sou passarinho Pra viver lá na prisão
Se entrega Corisco eu não me entrego não
Não me entrego ao tenente
Não me entrego ao capitão
Eu me entrego só na morte de parabelo na mão
Se entrega Corisco (se entrega Corisco)
Eu não me entrego não! Eu não me entrego não
Eu não me entrego não
Se entrega Corisco!
Eu não me entrego não
Eu não sou passarinho Pra viver lá na prisão
Se entrega Corisco eu não me entrego não
Não me entrego ao tenente
Não me entrego ao capitão
Eu me entrego só na morte de parabelo na mão
Se entrega Corisco (se entrega Corisco)
Eu não me entrego não! Eu não me entrego não
Eu não me entrego não
Farrea, farrea povo
Farrea até o sol raiar
Mataram Corisco
Balearam Dadá (bis…)
O sertão vai virá mar
E o mar virá sertão (bis)
Tá contada a minha estória
Verdade e imaginação
Espero que o sinhô
Tenha tirado uma lição
Que assim mal dividido
Esse mundo anda errado
Que a terra é do homem
Num é de Deus nem do Diabo (bis)