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Aquarius
Aquarius
Quando assisti a O Som a Redor duas coisas me impressionaram. Primeiro a capacidade técnica do filme demonstrada em detalhes de direção, montagem e, claro, desenho e mixagem de som. Segundo, o roteiro invertido que nos distraia em cenas enquanto uma curva-dramática era traçada no background. Essa história de pano de fundo trazia muito da nossa história, das raízes do nosso país em que nos davam esse cenário sócio-político-cultural em que nos encontramos.
Aquarius traz questões próximas, ainda que com uma estrutura de roteiro mais clássica. Tendo, inclusive, uma desnecessária divisão em três capítulos. O Cabelo de Clara - O amor de Clara - O câncer de Clara. Sim, o filme é sobre Clara, sobre a personagem específica que Sônia Braga dá vida com tamanha lucidez, ou as diversas Claras anônimas que habitam o nosso país e não desistem de seus ideais e sonhos, por mais pressão a que sejam submetidas.
Clara é uma senhora de mais de sessenta anos que viveu sua vida quase toda no condomínio Aquarius na praia de Boa Viagem em Recife. Uma construtora pretende derrubar esse prédio e construir um empreendimento moderno no local, mas a teimosa senhora é a única proprietária que não aceita vender o seu imóvel. O jovem Diego Bonfim que está a frente desse projeto também não é de desistir fácil e uma verdadeira guerra de nervos vai se iniciar.
Esse é o resumo da trama, mas mais do que isso, Aquarius é um retrato do nosso país. Um retrato crítico e reflexivo que nos mostra divisões de classe, formações das grandes cidades, resquícios de coronelismo com famílias poderosas e seus subjugados ("Aqui quem não é Cavalcante é cavalgado", cita Clara em certo momento). Trata também do distanciamento dos "jovens" empresários, como Diego que chega dos Estados Unidos onde estudou "business", como ele mesmo disse, das próprias necessidades da população local e do que funciona ali.
É interessante perceber que Kleber Mendonça Filho consegue nos passar tudo isso sem didatismo. Suas cenas e seus diálogos fluem naturalmente, como se estivéssemos ali vendo a vida real em nossa frente. As personagens pulsam em cena. E suas falas nos convencem a todo instante da veracidade daqueles temas. Por mais teimosa que pareça ser Clara, compramos sua briga, compreendemos sua luta.
E muito desse mérito vem do elenco. Todos os atores estão muito bem em cena, trazendo verdade e embasando suas personagens de vida e emoção. O destaque vai para Sônia Braga apenas porque ela é a mais exigida. Está em tela quase toda a projeção e com muitos momentos de intensidade cênica. Tudo gira em torno dela e por causa dela. Construído sob medida para que ela possa expor todo potencial como talvez nunca tenha tido em sua carreira. Mas não podemos deixar de elogiar os sempre competentes Maeve Jinkings e Irandhir Santos. Além de Humberto Carrão que casou perfeitamente com o perfil do jovem empreendedor arrogante Diego.
Se em história e atuação, o filme nos envolve e encanta, a direção não fica atrás. Toda a composição do filme, seja em fotografia, montagem, som ou escolha de planos flui de uma maneira própria. Aquarius tem vida em cada passagem, principalmente nos raccords que permitem passagem leves seja de um plano a outro ou de um tempo a outro, como quando pula de 1980 para o tempo atual utilizando uma música. As músicas, por sinal, dão um toque especial a obra, com passagens belas de apreciação pura, ou quando a letra ajuda na narrativa.
Há política em Aquarius, como entendimento de que isso faz parte da vida e do posicionamento social, assim como há cultura, memória e resistência. Há a junção do novo com o antigo que traduz a própria Clara, em seu apartamento velho, mas reformado e modernizado por dentro, onde mp3 convive com vinil em perfeita harmonia. É uma pena que um filme tão poético e metafórico da nossa própria existência esteja envolto em campanhas tão mesquinhas porque sua equipe ousou se expressar no principal festival de cinema do mundo. Celebremos o cinema. Celebremos Aquarius e a diversidade de pensamentos.
Aquarius (Aquarius, 2016 / Brasil)
Direção: Kleber Mendonça Filho
Roteiro: Kleber Mendonça Filho
Com: Sonia Braga, Maeve Jinkings, Irandhir Santos, Humberto Carrão
Duração: 144 min.
Amanda Aouad
Crítica afiliada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), é doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Poscom / UFBA) e especialista em Cinema pela UCSal. Roteirista profissional desde 2005, é co-criadora do projeto A Guardiã, além da equipe do Núcleo Anima Bahia sendo roteirista de séries como "Turma da Harmonia", "Bill, o Touro" e "Tadinha". É ainda professora dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unifacs e da Uniceusa. Atualmente, faz parte da diretoria da Abraccine como secretária geral.
Aquarius
2016-09-01T08:30:00-03:00
Amanda Aouad
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