
Ponto de vista é algo fundamental no cinema. Uma mesma história, com os mesmos plots points da narrativa, pode ser feito de forma completamente diferente. É o que aconteceu com O Estranho que Nós Amamos, filme baseado no livro de Thomas Cullinan que, em 1971, teve uma visão masculina nas mãos de Don Siegel e agora ganha uma visão feminina nas mãos de Sofia Coppola.
A história é a mesma, um soldado ianque ferido é abrigado em um colégio para moças na Virginia durante a guerra civil americana. Em vez de entregá-lo às tropas sulistas, elas cuidam dele, com a desculpa de não ser cristão entregá-lo à morte, mas acabam se afeiçoando ao rapaz, o que traz consequências para todos. O que não tem aqui e tinha em 1971 é uma visão extremamente maniqueísta da situação. Aqui, as mulheres não são personagens rasas, erotizadas em cenas de sexo ou repudiadas por disputarem o homem de maneira mesquinha e vingativa.

A trama da dona da casa, Mrs. Martha, inclusive, é suavizada. Não existe mais a trama secundária de um irmão que antes administrava o espaço com ela e que em flashbacks dava-se a entender a relação incestuosa. Assim, ela torna-se uma mulher "normal" e não uma "pecadora" que já "cedeu" aos prazeres do sexo e por isso está mais susceptível aos encantos do estranho. Isso traz uma nova perspectiva para ela e suas atitudes na parte final da trama. Não existe também a escrava do primeiro filme, deixando para ela o trabalho pesado da limpeza e manutenção do casarão, o que não deixa de ser interessante.
Coppola foi criticada por alguns por esse ato, como estivesse embranquecendo o filme, o que não deixa de ser verdade. A diretora alegou que não queria tratar o tema da escravidão de maneira leve, o que faz sentido, já que ela está lá apenas como um costume, sem questionar sua posição de subalterna. Mas, talvez, pudesse haver uma forma de colocá-la como uma igual ali. Diante de uma situação de guerra, não seria inverossímil, mesmo se passando no Sul escravocrata.

Não por acaso, rendeu o prêmio de Melhor Direção no Festival de Cannes. A maneira como Coppola constrói o olhar, fechada quase o tempo todo no casarão e seu jardim, é extremamente habilidosa. A penumbra que cobre as cenas, mesmo em sol forte traz belas metáforas. O enquadramento que busca em diversos momentos, como a casa de um lado e a árvore de outro, dando não apenas um efeito estético interessante, como a mensagem de que elas estão ali confinadas. É admirável. A trilha, ou a ausência dela, também ajuda a construir essa atmosfera realista e onírica ao mesmo tempo, já que sons de pássaros são uma constante.
O Estranho que Nós Amamos pode não estar entre os melhores filmes de Sofia Coppola, mas demonstra uma maturidade da diretora que consegue harmonizar os elementos técnicos e estéticos de uma maneira primorosa. E ainda vence o desafio de ressignificar situações através do olhar feminino para aquilo que parecia o sonho e o pesadelo de um homem heterossexual.
O Estranho que Nós Amamos (The Beguiled, 2017 / EUA)
Direção: Sofia Coppola
Roteiro: Sofia Coppola
Com: Nicole Kidman, Kirsten Dunst, Elle Fanning, Oona Laurence, Colin Farrell
Duração: 93 min.