Um filme é um retrato de sua época. Isso não quer dizer que um filme não possa ecoar em outros momentos, ainda mais em uma História cíclica como a da nossa civilização. Mas, seja em que tempo ocorra sua narrativa, ele dialoga com a sociedade existente no período de seu lançamento, sendo um retrato de seus pensamentos, hábitos, valores e costumes.
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A Mulher Rei
A Mulher Rei
Um filme é um retrato de sua época. Isso não quer dizer que um filme não possa ecoar em outros momentos, ainda mais em uma História cíclica como a da nossa civilização. Mas, seja em que tempo ocorra sua narrativa, ele dialoga com a sociedade existente no período de seu lançamento, sendo um retrato de seus pensamentos, hábitos, valores e costumes.
A Mulher Rei, dirigido por Gina Prince-Bythewood, é baseado em uma história real. Retrata um exército de mulheres conhecido como Agojie que defendia o Reino de Daomé, na África entre os séculos XVII e XIX. Mas é um filme de ficção com propósitos para além do retrato histórico. Encabeçado por pessoas negras, inclusive a atriz e protagonista Viola Davis que é uma das que assina a produção do filme, busca dialogar com a população atual.
Sem dar spoiler, mas é possível afirmar, por exemplo, que um certo discurso no ato final é claramente para hoje, 2022. E isso não é exatamente um erro como alguns tentaram levantar com a hashtag de boicote no twitter. É apenas um recurso possível, afinal, uma obra fílmica é um programa de efeitos e diversas outras obras ditas históricas já utilizaram esses recursos. Filmes como Cleópatra, Ben-hur, Os dez mandamentos, Coração Valente e tantos outros épicos também tiveram suas doses de melodrama e nunca foi um problema.
Importante ressaltar que, apesar da escolha política, o roteiro da própria Gina Prince-Bythewood com Dana Stevens não se furta a discutir a questão histórica de que os prisioneiros de guerra eram vendidos aos europeus para serem escravizados. Isso, inclusive, é um dos conflitos tratados na trama. A ameaça do Império Oyo e os ideais do novo rei Ghezo, interpretado por John Boyega, inspirados pelos conselhos de Nanisca, demonstram bem isso. O que demonstra que as reclamações dos que protestam dizendo que isso foi ignorado pela narrativa, romanceando a realidade, não tem tantos fundamentos.
Há alguns recursos exageradamente romanceados, é verdade, inclusive um flerte com a trama de Pocahontas que cria alguns plots incômodos. Há também uma revelação que busca apenas a construção de uma emoção exacerbada dos folhetins. Porém, isso não compromete o arco principal, nem o envolvimento na trama que traz uma estrutura épica grandiosa com cenas que ajudam a construir uma aura heróica para aquelas mulheres.
A trama utiliza-se do recurso do novato a partir da personagem da jovem Nawi que é entregue pelo pai para ser treinada pelas Agojie por ser rebelde e não querer casar. Através do olhar da moça vamos conhecer o universo dessas amazonas, suas regras, seu treinamento e seus rituais. E nos aproximar da comandante Nanisca, interpretada de maneira impressionante por Viola Davis. Há tanta verdade em cada gesto da atriz que quase acreditamos estarmos diante mesmo da guerreira que, apesar de fictícia, busca representar o espírito desse lendário grupo.
A progressão narrativa é bem distribuída entre questões políticas, dramas pessoais e cenas de guerra, dosando as sensações durante a projeção que nos deixam presos à tela e ajudam a construir a empatia com o grupo. Não são apenas Nawi e Nanisca que importam, cada mulher ali tem um papel importante e esse sentimento colaborativo é também uma forma de trabalhar o preconceito em uma sociedade machista que submete a mulher ao homem em diversos níveis.
As cenas de luta são ágeis, com muitos planos curtos e com enquadramentos mais fechados que ajudam a deixar as ações mais dinâmicas, escondendo possíveis falhas na mise-en-scène. O balé construído dá uma dimensão da agilidade e força daquelas mulheres que são treinadas de maneira tão intensa conseguindo derrubar homens aparentemente mais fortes. Vale ressaltar que a musicalidade e as relações religiosas dão um plus àquelas mulheres que são respeitadas e admiradas como quase deusas.
A reconstituição de época também chama a atenção com uma direção de arte cuidadosa. Impressiona as cenas na praia com o mercado de escravos e os grilhões que tanto assombram ainda hoje. O reino de Daomé também é bem construído com detalhes ricos de cada cenário e figurino que nos faz retornar a uma África do passado.
Mais do que um filme histórico, A Mulher Rei é um filme reparador. Busca um diálogo crítico com o passado para repensar o presente e construir um novo futuro. É um marco importante ser dirigido, produzido e protagonizado por mulheres negras que sempre foram ignoradas pelo cinema. E não podemos negar a importância disso, independentemente de qualquer outro mérito. Se não bastasse, é um filme bem realizado, envolvente e com uma história capaz de nos arrebatar, sem medo de ser piegas.
A Mulher Rei (2022, EUA)
Direção: Gina Prince-Bythewood
Roteiro: Gina Prince-Bythewood e Dana Stevens
Com: Viola Davis, Thuso Mbedu, Lashana Lynch, Sheila Atim, John Boyega
Duração: 144 min.
Amanda Aouad
Crítica afiliada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), é doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Poscom / UFBA) e especialista em Cinema pela UCSal. Roteirista profissional desde 2005, é co-criadora do projeto A Guardiã, além da equipe do Núcleo Anima Bahia sendo roteirista de séries como "Turma da Harmonia", "Bill, o Touro" e "Tadinha". É ainda professora dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unifacs e da Uniceusa. Atualmente, faz parte da diretoria da Abraccine como secretária geral.
A Mulher Rei
2022-09-27T16:58:00-03:00
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