O enredo, que acompanha Thomas Anderson, um programador inquieto que à noite atende por Neo, o hacker, parte de uma premissa simples: a realidade como a conhecemos é uma simulação, uma “Matrix” criada por máquinas para manter os humanos sob controle. Em troca da verdade, o personagem é convidado a escolher entre a pílula azul e a vermelha — metáfora que, não por acaso, se tornou meme, bandeira ideológica e símbolo de uma geração que começou a desconfiar da superfície.
O que torna Matrix mais do que um exercício de ficção científica com tiroteios coreografados é a maneira como ele articula essa desconfiança. A pergunta “O que é real?” perpassa o filme como uma corrente elétrica. As Wachowski não escondem suas influências — Platão, Descartes, o budismo, o cristianismo, os quadrinhos cyberpunk, Ghost in the Shell — mas também não se perdem nelas. Há um controle estético e conceitual impressionante para duas cineastas que estavam, até então, às margens de Hollywood. Tudo parece funcionar em consonância: da escolha do elenco à direção de arte, do uso inovador dos efeitos visuais à trilha sonora carregada de tensão e tecnologia.
Keanu Reeves, no papel de Neo, faz o que sempre soube fazer melhor: um herói silencioso, deslocado, cuja expressão vaga parece flutuar entre o espanto e a dúvida. Muitos criticaram a limitação de sua performance — mas é justamente essa neutralidade, esse quase vazio existencial, que torna o personagem tão crível. Neo não é o escolhido porque é especial. Ele é o escolhido porque, como muitos de nós, ele duvida. E essa dúvida o move.
Laurence Fishburne entrega um Morpheus carismático, quase messiânico, um guia que carrega nas costas o peso da fé cega em uma profecia. Já Carrie-Anne Moss, como Trinity, é a pulsação do filme. Seu equilíbrio entre força e fragilidade constrói uma personagem que não está ali para ser coadjuvante de ninguém. Ao contrário: ela conduz, combate, ama e impõe respeito — tudo isso com uma fisicalidade impressionante que antecipa a era das heroínas de ação. Hugo Weaving, como o agente Smith, oferece o contraponto exato: uma presença ameaçadora, fria, que transforma a burocracia em vilania. Sua voz pausada, sempre à beira do deboche, é uma das assinaturas mais sinistras do filme.
Do ponto de vista técnico, Matrix é um marco. O uso do efeito bullet time, em que o tempo parece desacelerar enquanto a câmera gira ao redor da ação, não apenas se tornou icônico como redefiniu a estética dos filmes de ação e dos games nos anos seguintes. Mas o filme vai além do virtuosismo. Os efeitos não estão ali para deslumbrar — estão a serviço do conceito. Cada cena de ação carrega um peso simbólico: a luta contra as máquinas é também a luta contra o sistema, contra a ordem estabelecida, contra a ilusão da normalidade. A coreografia das lutas, inspirada em filmes de artes marciais de Hong Kong, não é gratuita. É uma forma de resistência física contra o algoritmo.
Visualmente, Matrix estabelece uma paleta de verdes sombrios e ambientes metálicos que reforçam a frieza do mundo simulado. A direção de fotografia trabalha com contrastes e sombras, criando uma atmosfera quase noir em meio ao digital. O design de produção aposta em contrastes visuais e espaciais: o mundo real, escuro e destruído, versus a ilusão limpa e tecnológica da Matrix. É uma escolha estética que carrega significado político. O paraíso da simulação é uma prisão — mas uma prisão confortável. O deserto do real é árido, mas é livre.
Ainda assim, seu subtexto filosófico, embora fascinante, por vezes escorrega no didatismo. A tentativa de explicar com minúcia o funcionamento da Matrix, de detalhar as profecias, os papéis de cada personagem na “batalha final”, pode soar excessiva. Há momentos em que o filme confia menos na inteligência do espectador do que deveria. E a própria ideia do “escolhido”, embora trabalhada de maneira interessante, caminha perigosamente entre o messiânico e o simplista.
Mas há cenas que compensam qualquer tropeço. A sequência do saguão, com Neo e Trinity invadindo um prédio sob chuva de balas e câmera em rotação, permanece até hoje como uma das mais eletrizantes já filmadas. E não é apenas técnica: há ali uma encenação quase operística, uma dança entre destruição e libertação, uma coreografia que combina estética e conteúdo como poucos filmes conseguiram. É, talvez, a melhor representação visual do que Matrix realmente quer dizer: para sair da ilusão, é preciso confronto. Com o sistema. Com os outros. Com você mesmo.
O tempo foi generoso com Matrix. Em um mundo cada vez mais controlado por algoritmos, redes sociais, IA e bolhas ideológicas, sua pergunta central permanece urgente: estamos vivendo uma realidade ou apenas uma versão confortável dela? E se descobríssemos que tudo o que achamos ser verdade é, na verdade, uma construção? O que faríamos com esse conhecimento?
As Wachowski nos deram mais do que um filme de ação espetacular. Deram-nos uma lente. Uma forma de olhar o mundo — e desconfiar dele. Ao fim de Matrix, o que fica não é a grandiosidade dos efeitos ou o culto ao herói, mas o desconforto. A sensação de que talvez, apenas talvez, estejamos todos presos. E que, para despertar, seja preciso mais do que uma pílula vermelha.
Talvez, seja preciso coragem.
Matrix (The Matrix, 1999 / Estados Unidos, Austrália)
Direção: Lilly Wachowski e Lana Wachowski
Roteiro: Lilly Wachowski e Lana Wachowski
Com: Keanu Reeves, Laurence Fishburne, Carrie-Anne Moss, Hugo Weaving, Joe Pantoliano
Duração: 136 min.