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O Beijo no Asfalto

O Beijo no Asfalto - filme

filmes que permanecem relevantes não por envelhecerem bem, mas porque escancaram feridas que nunca chegaram a cicatrizar. O Beijo no Asfalto (1981), dirigido por Bruno Barreto, é um desses casos. Ao adaptar a peça de Nelson Rodrigues, dramaturgo e cronista da moralidade podre das classes médias brasileiras, Barreto leva ao cinema um teatro da crueldade cotidiana, onde o escândalo nasce menos do gesto e mais da forma como a sociedade escolhe enxergá-lo. O beijo, neste caso, é menos sobre o toque dos lábios e mais sobre o que se projeta sobre ele.

A história gira em torno de Arandir, vivido com intensidade e contenção por Ney Latorraca. Ele é um homem simples, casado com Selminha (Christiane Torloni), que se vê envolvido numa tempestade moral depois de beijar um homem agonizante atropelado na rua. O beijo, um ato de humanidade, é transformado pela imprensa sensacionalista e pela moralidade distorcida dos que o cercam em uma confissão de homossexualidade. O gesto, que deveria simbolizar empatia, vira símbolo de perversão e Arandir passa de herói a suspeito em questão de minutos. O que Barreto escancara aqui é a pressa da sociedade em criar narrativas convenientes, mesmo à custa da verdade.

Bruno Barreto, diretor que àquela altura já era conhecido por obras como Dona Flor e Seus Dois Maridos, opera aqui num tom mais sombrio e seco. Ele abandona a sensualidade solar de suas obras anteriores e mergulha num Rio de Janeiro urbano, claustrofóbico e opressivo. Há uma tensão constante no ar, amplificada pela trilha discreta de César Camargo Mariano e por uma fotografia carregada em sombras e tons ocres, que aproxima o filme de um noir tropical, um mundo onde ninguém é inocente e onde todos se apressam em apontar dedos, como se acusar fosse uma forma de se absolver.

O Beijo no Asfalto - filme
Mas é o elenco que sustenta a estrutura dramática da obra. Ney Latorraca nunca esteve tão vulnerável em cena. Sua performance evita a caricatura e aposta numa angústia silenciosa, num homem que não compreende a dimensão da tempestade que se abate sobre ele. Há momentos em que o ator parece encolher diante da câmera, como se a injustiça o esmagasse. O contraste com o Delegado Cunha, interpretado com raiva contida por Oswaldo Loureiro, é chocante. Cunha é o retrato perfeito do poder corrompido: misógino, homofóbico, manipulador, mas sempre protegido pela autoridade. É por meio dele que o filme faz sua crítica mais afiada: o Estado como braço da moral burguesa, mais preocupado em manter aparências do que em buscar a verdade.

O jornalista Amado Pinheiro (Daniel Filho), por sua vez, encarna o oportunismo da mídia. Ele não quer informar, quer vender manchetes. Seu jornal funciona como um tribunal informal que sentencia Arandir antes que qualquer investigação seja feita. A crítica ao jornalismo sensacionalista aqui é quase didática. Barreto opta por cenas em que vemos o texto sendo editado, as palavras sendo manipuladas, os títulos ganhando contornos escandalosos. O que se constrói não é uma notícia, é uma narrativa conveniente. Uma fake news à moda antiga.

Um dos momentos mais marcantes do filme é a sequência do interrogatório. Selminha, sentada diante de Cunha, tenta proteger o marido enquanto é bombardeada por perguntas insidiosas, preconceituosas e humilhantes. A câmera não a poupa, e também não poupa o espectador. Barreto filma com frieza, quase documentalmente, sem música de fundo, sem cortes rápidos. Apenas o embate entre a dignidade de uma mulher e a violência simbólica de um Estado que quer forçá-la a dizer o que ele já decidiu ser verdade. É um exemplo de como o filme sabe que seu maior horror não está no beijo, mas no que se faz dele.

O Beijo no Asfalto - filme
Ainda assim, em alguns momentos, a teatralidade do texto original de O Beijo no Asfalto parece pesar demais sobre o ritmo cinematográfico. Certos diálogos soam declamados, deslocados do tom realista que Barreto tenta estabelecer na mise-en-scène. Há também um certo desequilíbrio na condução narrativa: o primeiro ato é ágil, mas o segundo se arrasta, repetindo situações sem necessariamente aprofundá-las. No entanto, mesmo essas falhas ajudam a manter o caráter ambíguo da obra, como se o filme também estivesse em constante julgamento, como seu protagonista.

É importante lembrar que essa versão de O Beijo no Asfalto chegou aos cinemas em um momento histórico tenso: início dos anos 1980, final da ditadura militar brasileira, ainda sob censura. Falar de homossexualidade, hipocrisia social, abuso policial e manipulação midiática era mais do que ousado: era um ato político. O que hoje parece tema recorrente era, à época, quase impossível. E isso torna o filme ainda mais relevante. Nos dias de hoje, sua crítica à moral conservadora, ao jornalismo predador e à hipocrisia de uma sociedade que lincha antes de pensar ainda fala com uma desconcertante e infeliz atualidade.

No fim das contas, o beijo que Arandir dá no homem moribundo não é apenas o motor da trama. É um gesto revolucionário. Um tapa na cara da moral que prefere ver o outro morrer do que ser confundida com qualquer forma de afeto fora da norma. Bruno Barreto, com todas as tensões e contradições que carrega, entrega um filme de coragem, que pode não agradar a todos, mas que resiste, como o próprio Nelson Rodrigues bem quisesse, como uma cicatriz exposta. Uma ferida aberta na face de uma sociedade que, para não encarar seus preconceitos, prefere sempre culpar o outro.

Um filme brasileiro intenso, com atuações corajosas, uma direção consciente de sua função social e um roteiro que continua a nos provocar décadas depois. O Beijo no Asfalto (1981) ainda é, tragicamente, necessário.


O Beijo no Asfalto (1981 / Brasil)
Direção: Bruno Barreto
Roteiro: Doc Comparato
Com: Ney Latorraca, Tarcísio Meira, Lídia Brondi, Christiane Torloni, Daniel Filho, Oswaldo Loureiro, Thelma Reston
Duração: 80 min.

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