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A Escolhida
A Escolhida
Assistir A Escolhida (2020) é como caminhar sobre uma ponte tensa que separa passado e presente, dor e espetáculo, intenção e execução ambígua. O filme parte de uma premissa de choque, uma mulher negra bem-sucedida desperta em situação de escravidão presa em uma plantação, para fazer dessa desorientação um comentário sobre o racismo que ecoa até hoje.
A narrativa gira ao redor de Veronica Henley (Janelle Monáe), uma escritora reconhecida, ativista moderna, que, em um momento, é arrastada para um universo distorcido no qual é chamada Eden e vive o horror da escravidão. A proposta dúbia de passar entre dois tempos, o contemporâneo e o passado, poderia se desdobrar em uma reflexão poderosa, mas acaba esbarrando em escolhas narrativas que fragilizam o que poderia se tornar uma fábula ainda mais impactante.
Monáe empresta presença magnética em ambas as versões: quando Veronica, ela transmite uma confiança com leve tensão; quando Eden, ela suporta o peso da violência com resignada força. É impossível não se conectar com ela, mesmo nos momentos em que o roteiro parece querer apenas usá-la como um símbolo ambulante de sofrimento. Isso evidencia o talento de Monáe: ela eleva o material e, às vezes, o carrega.
Visualmente, A Escolhida tem acertos notáveis. A direção de estreia de Gerard Bush e Christopher Renz revela um olhar ambicioso: cenas longas, composições simétricas, uso de luz e sombra que joga com contraste emocional. Em uma sequência especialmente marcante, Veronica/Eden segura uma tocha em meio à escuridão, captando simultaneamente desespero e resistência. Uma imagem que sintetiza a intenção simbólica do filme: confrontar a escuridão, ou o passado, com o fogo da memória e da insurgência. Essa cena, ao combinar violência e espetáculo visual, é um dos momentos de tensão máxima, e funciona enquanto metáfora visual potente.
No entanto, essa mesma ambição visual, em muitos trechos, assume protagonismo exagerado em detrimento da coerência narrativa. O roteiro acena com pistas misteriosas, prometendo um plot twist, mas não sustenta o mistério com meios narrativos sólidos. Em vários momentos, o suspense cede a sequências fortes visualmente ou emocionalmente, mas desconectadas do arco interno dos personagens. A aura do filme tenta criar atmosfera constante, porém sem a firmeza que a sustente no clímax.
Parte do problema é que o filme exige que a plateia associe ideias entre passado e presente, poder e opressão, identidade e persistência, mas entrega essas ideias de forma muito explícita. Não há sutileza em algumas passagens, e a metáfora às vezes soa crua e repetitiva. Em vez de confiar no espectador para ligar os pontos, ele os entrega em discursos visuais ou falados que soam didáticos. Isso esvazia a densidade emocional, porque reduz a sensação de descoberta.
Outro ponto delicado é a tensão entre representação do horror e exploração do sofrimento. Há cenas que parecem querer chocar, mostrar o pior, e entre essas escolhas se passa uma linha tênue entre denunciar e estetizar. A sensação, por vezes, é de que o filme se prende demais ao horror explícito, como uma vitrine cruel, e a narrativa não investe profundamente em quem são os homens que perpetuam essa crueldade. São antagonistas de gestos e discursos, pouco mais que figuras representativas do racismo. Isso cria uma lacuna de empatia: se a protagonista é humanizada, os algozes permanecem mais como arquétipos do mal do que indivíduos com motivações mais complexas.
Gosto da maneira como A Escolhida tenta tensionar a ideia de que o passado não está morto, que ele permeia o presente. Esse tema tem muita força, especialmente num país em que as marcas da escravidão persistem. A ideia de que, sob uma aparência moderna, ainda somos movidos por padrões de segregação invisíveis, é poderosa e relevante. E nesse sentido, o filme acerta ao sublinhar, por exemplo, cenas cotidianas no presente que ecoam como microagressões: olhares, reações sutis, tratamento desigual, pequenas frustrações. Tudo sugere que o fantasma do passado ainda vive.
Mas onde ele peca é não conseguir manter o equilíbrio entre ambição e execução. Ao buscar chocar, perde delicadeza. Ao buscar metáfora, degenera em literalidade. O plot twist central, que deveria dar substância à construção paralela das narrativas, não consegue sustentar o peso dramático prometido. A estrutura que prometia união estética e conceitual acaba se rompendo, porque faltam camadas intermediárias para o espectador habitar seus pensamentos.
Em síntese, A Escolhida é um filme de boas intenções, com lampejos visuais e simbólicos marcantes, sustentado por uma atuação sólida de Janelle Monáe. Mas é também um projeto que não excede sua ambição. Flerta com profundidade, mas não a abraça totalmente. Ele incomoda, e por isso já merece atenção, mas não convence todos os momentos. É um filme cuja ideia é maior do que seu alcance narrativo. Ainda assim, mesmo com suas falhas, ele nos força a olhar para o espelho da história e ver o reflexo hoje de um passado terrível que ainda persiste.
A Escolhida (Antebellum, 2020 / Estados Unidos)
Direção: Gerard Bush, Christopher Renz
Roteiro: Gerard Bush, Christopher Renz
Com: Janelle Monáe, Jena Malone, Jack Huston, Kiersey Clemons, Gabourey Sidibe
Duração: 106 min.
Ari Cabral
Bacharel em Publicidade e Propaganda, profissional desde 2000, especialista em tratamento de imagem e direção de arte. Com experiência também em redes sociais, edição de vídeo e animação, fez ainda um curso de crítica cinematográfica ministrado por Pablo Villaça. Cinéfilo, aprendeu a ser notívago assistindo TV de madrugada, o único espaço para filmes legendados na TV aberta.
A Escolhida
2025-11-10T08:30:00-03:00
Ari Cabral
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