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Bem-vindo a Marly-Gomont
Bem-vindo a Marly-Gomont
Assistir a Bem-vindo a Marly-Gomont é entrar, aos poucos, num fascinante jogo de escalas narrativas: o pequeno choque entre mundo rural e mundo estrangeiro, o desconforto íntimo do sujeito negro em território branco e o desafio de converter aparente estranheza em confiança. O filme, baseado na história real de Seyolo Zantoko, parte de uma premissa simples: um médico recém-formado aceita atendimento em uma comuna rural da França em meados da década de 1970, com esposa e filhos, mas carrega em si tensões históricas, sociais e simbólicas que exigem cuidado.
A direção de Julien Rambaldi é ponderada, deliberadamente contida. Ele opta por uma mise en scène que evita artifícios estilísticos extravagantes. Não há muitos cortes bruscos, nem montagens fragmentadas: seguimos esse mundo rural quase com a lentidão de quem caminha pelas ruas lamacentas de Marly-Gomont. Essa escolha tem vantagens e desvantagens. Se por um lado respeita a verossimilhança da narrativa e não quer emoções forçadas, por outro, às vezes o ritmo cai, e certas sequências poderiam ganhar com um arranjo narrativo mais ousado.
O que faz o filme rimar bem com sua proposta, e compensar suas suavidades, é o elenco. Marc Zinga, no papel de Seyolo, equilibra firmeza com fragilidade. Há momentos em que ele reprime uma ferida interior e, outros, em que seu olhar denuncia um homem lutando por dignidade. Aïssa Maïga, como Anne, empresta ao filme sua presença mais complexa: não é mera coadjuvante de sacrifício. Ela é voz crítica, parceira, e às vezes a atriz que carrega o peso narrativo de questionamentos que o marido talvez não verbalize. Os atores-mirins, que interpretam Kamini e Sivi, surpreendem pela naturalidade e agem com leveza e firmeza. Os filhos, em certos momentos, são mais incisivos que os pais na crítica social.
Há uma cena que para mim resume bem o impacto do filme: uma missa de véspera de Natal. A família Zantoko se junta aos poucos aos fiéis numa capela, e durante o cântico natalino algo muda. Aos poucos, o gesto de bater palmas e cantar com fervor vem, mesmo que leve, em meio ao olhar contrariado de outros. A música atravessa a narrativa, não apenas trilha, mas ato de resistência, e esse momento funciona como metáfora da inclusão que o filme almeja. Uma cena delicada que mistura emoção, suspense e uma sutileza simbólica que eleva a obra além do previsível.
Mas nem tudo funciona sem contradição. Em alguns momentos, o filme escorrega para uma complacência sentimental, especialmente quando pressiona a aceitação final. A integração da família ao vilarejo ocorre de forma relativamente tranquila no desfecho e, embora isso seja condizente com a história real, pode parecer que o caminho é mais linear do que as tensões permitiriam.
Outro ponto que me incomoda é a previsibilidade de certas situações dramáticas: a negação inicial dos pacientes, as ofensas veladas, a desconfiança animada. Essas viradas não são inéditas no cinema, mas, quando o roteiro poderia se abrir para dissonâncias maiores, opta por reconciliações evocativas. Em comparação com o álbum musical original de Kamini, um dos roteiristas que está, aqui, contando a história do seu pai, cuja canção Marly-Gomont era ácido relator da exclusão, o filme às vezes suaviza o tom.
Ainda assim, o filme se destaca nas suas pequenas rupturas: o embate linguístico revela mais sobre os mecanismos do preconceito do que dezenas de confrontos explícitos. A resistência silenciosa do pai, a insistência da mãe, o olhar dos filhos: tudo compõe camadas sutis. E o detalhe de que Kamini, na vida real, adaptou essa história, coescrevendo o roteiro, torna a obra também um gesto de preservação memorial e uma homenagem que evita a autocomplacência. Bem-vindo a Marly-Gomont é, antes de mais nada, uma história de pertencimento.
No equilíbrio entre comédia e drama, ele acerta muito mais do que falha: há muitos sorrisos genuínos, abraços de esperança, cenas em que nos reconhecemos: vítimas e agentes de estranhamento. O filme não é uma obra-prima radical, tampouco uma comédia leve despretensiosa, ele flutua entre a leveza e a obrigação moral de apontar exclusões sociais. Seu valor está em nos lembrar que integrar não é só aceitar, mas conviver com as dificuldades.
É possível desejarmos que o filme ousasse mais, tanto no tom, quanto no conflito e na dissonância, mas acredito que sua maior virtude é justamente essa moderação: não quer chocar por chocar, nem panfletar com força bruta. Ele aposta no apelo humano, no micro-confronto cotidiano, no gesto mínimo que muda os olhares. E por isso, mesmo em seus momentos previsíveis, ele permanece vívido.
Se eu tivesse que destacar em que Bem-vindo a Marly-Gomont sintetiza sua ambição e seu risco, diria que é na cena em que Seyolo, hesitando, atende um paciente desconfiado, ou em que ele exige o respeito que lhe deviam simplesmente por ser médico. Essas instâncias mínimas sintetizam a tensão entre invisibilidade e visibilidade que perpassa todo o filme.
Em resumo: Bem-vindo a Marly-Gomont não revoluciona, mas cumpre bem sua promessa. É uma comédia dramática sensível, com atuações comprometidas, um equilíbrio delicado entre humor e indignação, e um gesto memorial que ganha força por não subestimar o espectador, ainda que às vezes prefira a ternura segura ao risco maior do confronto.
Bem-vindo a Marly-Gomont (Bienvenue à Marly-Gomont, 2016 / França, Bélgica)
Direção: Julien Rambaldi
Roteiro: Julien Rambaldi, Kamini, Benoît Graffin
Com: Marc Zinga, Aïssa Maïga, Bayron Lebli, Médina Diarra
Duração: 96 min.
Ari Cabral
Bacharel em Publicidade e Propaganda, profissional desde 2000, especialista em tratamento de imagem e direção de arte. Com experiência também em redes sociais, edição de vídeo e animação, fez ainda um curso de crítica cinematográfica ministrado por Pablo Villaça. Cinéfilo, aprendeu a ser notívago assistindo TV de madrugada, o único espaço para filmes legendados na TV aberta.
Bem-vindo a Marly-Gomont
2025-11-07T08:30:00-03:00
Ari Cabral
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