Um novo despertar
Quem já viveu ou conviveu com a depressão sabe o quanto ela pode ser devastadora. Uma doença que tira do ser humano o principal fator: a vontade de reagir. Um novo despertar, terceiro longametragem dirigido por Jodie Foster traz, com muita inteligência e honestidade, este estado de espírito e ainda é repleto de símbolos e fatores externos que o tornam mais especial. Primeiro é quase o resgate da diretora que há dezesseis anos não conseguia emplacar seu novo trabalho. Segundo é a nova chance de Mel Gibson, que passa pelo pior momento de sua vida após escândalos com álcool, reações contra seu machismo e anti-semitismo e persona non grata em diversas produções. Mas, tudo se torna secundário ao vermos o projeto na tela. É a magia do cinema que nos faz embarcar em um mundo que vale muito mais a pena.
Walter Black encontra-se em depressão profunda. Sua esposa Meredith cansou e o colocou para fora de casa, seu filho Porter o despreza e seu caçula Henry sofre isolamento na escola pela ausência do pai. Nada parece funcionar, não restam esperanças, nem mesmo uma luz no fim do túnel. A solução seria dar fim a uma vida sem sentido. No auge desse pensamento surge uma nova personalidade, o castor. Um fantoche que iria jogar no lixo parece ganhar vida própria, tal qual Tyler Durden que vem salvar Jack de sua vida insossa. Através do Castor, Walter volta a viver, porém, o boneco jamais será ele e isso, claro, gera conflitos.
O título brasileiro, como sempre, parte para o óbvio. Um novo despertar é poético, mas acaba sendo extremamente simples para designar The Beaver, o título original. Na verdade, o título francês acaba melhor traduzindo o roteiro de Kyle Killen, "Le complexe du castor" é dúbio; ao mesmo tempo em que dá nome ao processo psicológico que o personagem passa, demonstra a complexidade do personagem principal. Porque o roteiro transita entre a sutileza e o didatismo em diversos momentos. Mas, nem por isso deixa de ser interessante. No primeiro ato, me incomodou a divisão de atenção entre a trama do pai Walter e do filho Porter, parecia que roteirista e a diretora não se decidiam em relação a que história estariam contando. Depois, sem querer entregar spoilers, tudo se demonstrou bastante coerente, como um ciclo, ou dois momentos de um mesmo personagem.
Esta questão está em vários detalhes desde o princípio do filme, quando Porter é apresentado como o filho que tem horror ao pai e coleciona hábitos semelhantes a ele que precisa mudar. Interessante perceber que estas semelhanças estão anotadas em post its coloridos colocados em uma parte do quarto, enquanto na outra parte, Porter coleciona cartazes e desenhos que os inspiram, todos em preto, sem nenhuma cor. Entre essas duas coisas, o seu refúgio na parede onde bate a cabeça. Mas, a relação pai e filho é literalmente posta em tela quando ambos se arrumam para um encontro com suas "garotas". Jodie Foster os coloca em ações iguais e divide a tela dando a sensação de um espelho. E as informações do ciclo familiar são postas aos poucos, para que montemos o quebra-cabeças daquela sina.
A depressão permeia a tela em imagens pontuais como uma goteira no teto que mancha a cama, no programa de televisão que fala sobre fracasso, no clima familiar. E tudo fica pior com aquela estranha atitude de conviver com um fantoche. É algo ridículo, absurdo sem dúvidas. Ou embarcamos na loucura ou nada fará sentido. E para Meredith e principalmente, para Porter, definitivamente não faz. Enquanto isso, o pequeno Henry passa pelo processo oposto. Esquecido pelo pai e confundido pela mãe que sempre passa por ele na escola sem reconhecer, acaba encontrando no Castor um estímulo para uma vida melhor, até amigos ele passa a ter.
"Eu não sou um boneco", afirma o Castor. E realmente não é. O complexo Castor é uma personalidade que comanda Walter em busca de esquecer o passado e descobrir um novo caminho para sua vida. É possível perceber na expressão de Mel Gibson a diferença de Walter para o Castor. Não apenas no gesto de levantar ou abaixar a mão esquerda, mas em cada expressão de seu rosto, corpo e forma de falar. Nisso, o ator está esplêndido, realmente. Quando vai à televisão apresentar seu novo invento, já que é presidente de uma indústria de brinquedos, acaba passando a mensagem à sua família. "Loucura é fingir que sou feliz", ele afirma. A indústria embarca naquele jogo como se fosse apenas uma ação de marketing, tanto que os programas enquadram o castor na tela, sem Walter, ele é o personagem que apresenta a novidade. Para aqueles que acreditam ser apenas um personagem, o sucesso do brinquedo de ferramentas é inofensivo, mas para a família é um caminho sem volta para a total perda de sanidade daquele que um dia foi um homem por inteiro.
Um novo despertar é um filme honesto sobre uma doença psíquica assustadora. Diante dela, nossos entes queridos se tornam apenas um rascunho do que um dia foram. Jodie Foster consegue construir uma bela catarse que apenas os que nunca presenciaram uma situação parecida podem achar fácil ou tola. Escolhas, epifanias e reencontros de almas são o caminho necessário. Única forma de resgatar do fundo do poço aquilo que aparentemente não tem mais jeito. Pode não ser a melhor coisa que vi em tela nos últimos tempos, mas possui uma verdade ali. Os maiores pontos positivos são a sensibilidade de sua diretora e a entrega dos três atores principais: Mel Gibson, Anton Yelchin e Riley Thomas Stewart. Uma pena que preconceitos externos tenham feito desta obra, um fracasso de bilheteria.
Um novo despertar (The Beaver: 2010 /EUA)
Direção: Jodie Foster
Roteiro: Kyle Killen
Com: Mel Gibson, Jodie Foster, Anton Yelchin, Jennifer Lawrence.
Duração: 92 min
Walter Black encontra-se em depressão profunda. Sua esposa Meredith cansou e o colocou para fora de casa, seu filho Porter o despreza e seu caçula Henry sofre isolamento na escola pela ausência do pai. Nada parece funcionar, não restam esperanças, nem mesmo uma luz no fim do túnel. A solução seria dar fim a uma vida sem sentido. No auge desse pensamento surge uma nova personalidade, o castor. Um fantoche que iria jogar no lixo parece ganhar vida própria, tal qual Tyler Durden que vem salvar Jack de sua vida insossa. Através do Castor, Walter volta a viver, porém, o boneco jamais será ele e isso, claro, gera conflitos.
O título brasileiro, como sempre, parte para o óbvio. Um novo despertar é poético, mas acaba sendo extremamente simples para designar The Beaver, o título original. Na verdade, o título francês acaba melhor traduzindo o roteiro de Kyle Killen, "Le complexe du castor" é dúbio; ao mesmo tempo em que dá nome ao processo psicológico que o personagem passa, demonstra a complexidade do personagem principal. Porque o roteiro transita entre a sutileza e o didatismo em diversos momentos. Mas, nem por isso deixa de ser interessante. No primeiro ato, me incomodou a divisão de atenção entre a trama do pai Walter e do filho Porter, parecia que roteirista e a diretora não se decidiam em relação a que história estariam contando. Depois, sem querer entregar spoilers, tudo se demonstrou bastante coerente, como um ciclo, ou dois momentos de um mesmo personagem.
Esta questão está em vários detalhes desde o princípio do filme, quando Porter é apresentado como o filho que tem horror ao pai e coleciona hábitos semelhantes a ele que precisa mudar. Interessante perceber que estas semelhanças estão anotadas em post its coloridos colocados em uma parte do quarto, enquanto na outra parte, Porter coleciona cartazes e desenhos que os inspiram, todos em preto, sem nenhuma cor. Entre essas duas coisas, o seu refúgio na parede onde bate a cabeça. Mas, a relação pai e filho é literalmente posta em tela quando ambos se arrumam para um encontro com suas "garotas". Jodie Foster os coloca em ações iguais e divide a tela dando a sensação de um espelho. E as informações do ciclo familiar são postas aos poucos, para que montemos o quebra-cabeças daquela sina.
A depressão permeia a tela em imagens pontuais como uma goteira no teto que mancha a cama, no programa de televisão que fala sobre fracasso, no clima familiar. E tudo fica pior com aquela estranha atitude de conviver com um fantoche. É algo ridículo, absurdo sem dúvidas. Ou embarcamos na loucura ou nada fará sentido. E para Meredith e principalmente, para Porter, definitivamente não faz. Enquanto isso, o pequeno Henry passa pelo processo oposto. Esquecido pelo pai e confundido pela mãe que sempre passa por ele na escola sem reconhecer, acaba encontrando no Castor um estímulo para uma vida melhor, até amigos ele passa a ter.
"Eu não sou um boneco", afirma o Castor. E realmente não é. O complexo Castor é uma personalidade que comanda Walter em busca de esquecer o passado e descobrir um novo caminho para sua vida. É possível perceber na expressão de Mel Gibson a diferença de Walter para o Castor. Não apenas no gesto de levantar ou abaixar a mão esquerda, mas em cada expressão de seu rosto, corpo e forma de falar. Nisso, o ator está esplêndido, realmente. Quando vai à televisão apresentar seu novo invento, já que é presidente de uma indústria de brinquedos, acaba passando a mensagem à sua família. "Loucura é fingir que sou feliz", ele afirma. A indústria embarca naquele jogo como se fosse apenas uma ação de marketing, tanto que os programas enquadram o castor na tela, sem Walter, ele é o personagem que apresenta a novidade. Para aqueles que acreditam ser apenas um personagem, o sucesso do brinquedo de ferramentas é inofensivo, mas para a família é um caminho sem volta para a total perda de sanidade daquele que um dia foi um homem por inteiro.
Um novo despertar é um filme honesto sobre uma doença psíquica assustadora. Diante dela, nossos entes queridos se tornam apenas um rascunho do que um dia foram. Jodie Foster consegue construir uma bela catarse que apenas os que nunca presenciaram uma situação parecida podem achar fácil ou tola. Escolhas, epifanias e reencontros de almas são o caminho necessário. Única forma de resgatar do fundo do poço aquilo que aparentemente não tem mais jeito. Pode não ser a melhor coisa que vi em tela nos últimos tempos, mas possui uma verdade ali. Os maiores pontos positivos são a sensibilidade de sua diretora e a entrega dos três atores principais: Mel Gibson, Anton Yelchin e Riley Thomas Stewart. Uma pena que preconceitos externos tenham feito desta obra, um fracasso de bilheteria.
Um novo despertar (The Beaver: 2010 /EUA)
Direção: Jodie Foster
Roteiro: Kyle Killen
Com: Mel Gibson, Jodie Foster, Anton Yelchin, Jennifer Lawrence.
Duração: 92 min
Amanda Aouad
Crítica afiliada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), é doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Poscom / UFBA) e especialista em Cinema pela UCSal. Roteirista profissional desde 2005, é co-criadora do projeto A Guardiã, além da equipe do Núcleo Anima Bahia sendo roteirista de séries como "Turma da Harmonia", "Bill, o Touro" e "Tadinha". É ainda professora dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unifacs e da Uniceusa. Atualmente, faz parte da diretoria da Abraccine como secretária geral.
Um novo despertar
2011-05-31T08:18:00-03:00
Amanda Aouad
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