
Não por acaso o personagem Jairo Mendes, cineasta polêmico de
Jogo das Decapitações, é uma espécie de alter ego de
Sérgio Bianchi. Não por acaso ele utilizou cenas de seu primeiro longametragem "
Maldita coincidência", como sendo o tal "
Jogo das Decapitações" que o personagem de
Fernando Alves Pinto procura. Tal qual o
cineasta fictício,
Bianchi joga na tela suas verdades que questiona a postura da esquerda após chegar ao poder. E constrói reflexões e paralelos interessantes, ainda que não queira dar respostas.
O
filme acompanha a saga de Leandro, filho do polêmico Jairo e da ex-revolucionária Marília, que está tentando finalizar o seu mestrado sobre grupos militantes que tentaram combater a
ditadura militar brasileira. Sua maior dificuldade é compreender totalmente o cenário da época e de hoje, principalmente ao acompanhar a nova meta de sua mãe, presidente de uma ONG para vítimas do regime que busca indenização do governo pela tortura que sofreu. E ao investigar melhor os pensamentos do pai, que supostamente morreu em uma rebelião acontecida em um presídio, vai tendo outra visão do contexto.

Na verdade, o
filme de
Sérgio Bianchi é uma busca por reflexão sobre essa geração que hoje vive do passado, de se vangloriar que foram revolucionários e merecem respeito, mas que, de fato, não estão fazendo muito diferente da direita de outrora. “Por que vocês continuam o discurso de vítima mesmo quando conseguem o que querem?", pergunta Leandro à mãe em determinado momento. Seu amigo Rafael vai além, quando critica a performance simulando uma
tortura em uma exposição que Marília organiza. “Se a gente pensar direito a tortura, ela é uma ferramenta do poder desde o Brasil colônia. Durante alguns poucos anos, uns 10, 20 anos, teve gente da classe média que foi torturada. Agora, louvar isso como um estado de exceção é classismo. Não é?”

São pensamentos polêmicos, mas que trazem boas reflexões em um contexto de
caos em que o
filme se organiza. O personagem de
Paulo César Pereio, o polêmico Jairo, grita na tela do passado: “No futuro, esquerda e direita jogarão o mesmo jogo, legitimadas por este tempo horrível que agora vivemos”. E tudo isso vai se misturando na mente de Rafael em um jogo imagético intenso, onde vemos imagens do
filme passado, entrevistas de Jairo, cenas atuais, sonhos angustiantes e imagens da rebelião na cadeia.
As cenas de
sonhos de Leandro são extremamente simbólicas, sempre com ele incapaz de falar. Como se sua boca não obedecesse ao cérebro e não conseguisse articular as palavras em diversas situações diferentes. Uma espécie de impotência diante de uma nova geração com a ilusão das possibilidades, mas sem voz de fato. Tanto que a cena da
manifestação na universidade é ridicularizada pela forma e pela quantidade de pessoas nela, pela forma como é dispersada e pelo descaso de Rafael e Leandro observando-a.

Mas, o foco maior é mesmo nessa geração de 60, e em suas versões atuais. É interessante, por exemplo, ver as cenas de
Sérgio Mamberti no filme antigo, ensinando a fazer um coquetel
molotov, e hoje, como um senador demagogo. Ou a personagem de
Maria Alice Vergueiro, que reacionária no vídeo, hoje é a vítima inconformada por estar em uma cadeira de rodas após tanta
tortura. "Pior do que o silêncio forçado, é a repetição de uma ideia em escala industrial", sentencia Jairo Mendes.
E diante de tanta
polêmica entre passado e presente, ideologia e senso de oportunidade,
Sérgio Bianchi ainda tem tempo para criticar a sociedade como um todo, na cena em que um rapaz atropela uma moça e vemos a reação enfurecida da população ao redor. Tudo com raciocínio coerente, ainda que pudesse ser melhor trabalhado para ficar mais palpável ao público em geral.
De qualquer maneira,
Jogo das Decapitações é coerente com a filmografia recente de
Sérgio Bianchi, principalmente
Cronicamente Inviável, ao questionar
paradoxos e se colocar em
reflexão. Não há exatamente julgamentos, nem fórmulas prontas, mas muita coisa é jogada em tela. Cabe a nós refletir o que faz sentido ou não.
Jogo das Decapitações (Jogo das Decapitações, 2014 / Brasil)
Direção: Sérgio Bianchi
Roteiro: Francis Vogner, Eduardo Benaim, Sérgio Bianchi
Com: Fernando Alves Pinto, Clarisse Abujamra, Maria Manoella, Silvio Guindane, Paulo Cesar Peréio, Maria Alice Vergueiro e Sérgio Mamberti
Duração: 96 min.