
Não há como falar de Vazante sem a polêmica que o precede, o que não deixa de ser injusto com a obra. A repercussão que nos chega desde a estreia no Festival de Brasília acaba conduzindo o nosso olhar. Mas mesmo fazendo um exercício de nos despir de qualquer preconceito, não há como negar que a obra tem problemas de representatividade. Não é o caso de chamá-la de racista ou exigir algo que ela não se propõe. Porém, ao alocar sua trama no período do Brasil Colônia deixando a questão da escravidão apenas como pano de fundo, Daniela Thomas acaba deslizando na história que busca contar.
Não se trata apenas de um problema de representatividade racial, mas de gênero também. Porque no final das contas o que parece importar é o drama do velho tropeiro português que perdeu sua esposa e filho no parto e governa aquela fazenda em estado de depressão. A criança com quem se casa, a escrava que abusa enquanto a esposa não menstrua, o escravo que não consegue se comunicar, o escravo capitão do mato ou mesmo o jovem escravo que se apaixona pela sinhazinha pouco importam. Suas dores parecem menores e nunca trabalhadas de fato. O que fica após a sessão é aquele grito de dor do "senhor" "ferido" em sua honra.
Pode ser uma visão, mas ao escolher não aprofundar nenhuma das tramas que apresenta, Daniela Thomas e Beto Amaral, que assina com ela o roteiro, dão margem a interpretações diversas. Em todas o senhor de escravos parece saltar aos olhos, mesmo que o jovem Virgílio seja um dos poucos personagens que nos lembramos do nome ao final da projeção. Isso não chega a ser um erro de roteiro, pode-se fazer um filme sobre um homem branco dono de escravos que perde sua mulher e filho, casa com uma criança e vivencia tudo que acontece na tela. A questão é que as demais dores gritam urgência, inclusive no discurso fora de tela dos seus realizadores, e não tem a devida atenção dentro da trama, caem no vazio, sem ter suas emoções trabalhadas a ponto criar a empatia necessária. O filme segue, então, uma narrativa ironicamente monocórdia diante de situações tão densas. Talvez por isso salte tanto aos olhos a técnica fílmica, que de fato impressiona. Não há dúvidas sobre o talento de Daniela Thomas para direção cinematográfica. Os planos são bem escolhidos, há uma busca pelo olhar contemplativo e a fotografia em P&B traz uma certa melancolia necessária à obra.
A reconstituição de época também é cuidadosa. Desde as paisagens inóspitas da fazenda até os detalhes da casa grande e senzala. Objetos, figurinos, estrutura da rotina no campo e no interior da casa nos dão uma dimensão precisa daquela rotina em um país em construção onde mesmo riqueza e poder nos soam pobres e incômodos. Há um cuidado também da diretora em não explicitar a violência apenas como arma de choque, assim como em preservar em alguns aspectos suas personagens femininas. Não vemos o estupro, nem mesmo a primeira noite da pequena com seu esposo tão mais velho. Muito do filme está no não dito, nas elipses, o próprio romance não é explicitado. Talvez por isso, o impacto da cena final seja tão grande. Não apenas por tudo o que representa na formação do Brasil e mitos que construímos da formação de nosso povo, mas pelas surpresa que alguns podem ter diante de alguns fatos.
Vazante é um filme polêmico, deslocado e vai carregar consigo, infelizmente toda essa construção e desconstrução de suas intenções e narrativas. Mas é também uma obra bem-vinda, não apenas pela técnica cinematográfica, mas por permitir discussões, reflexões e compreensões tão diversas. Chama a atenção em diversos aspectos e não deixa de ser positivo para o cinema brasileiro.
Filme visto no XIII Panorama Internacional Coisa de Cinema.
Vazante (Vazante, 2017 / Brasil)
Direção: Daniela Thomas
Roteiro: Daniela Thomas, Beto Amaral
Com: Adriano Carvalho, Luana Nastas, Sandra Corveloni, Vinicius dos Anjos, Fabrício Boliveira
Duração: 100 min.

