Grandes Cenas: O Rei Leão (com spoiler)
Aproveitando o gancho da nova versão do Rei Leão que chega aos cinemas na próxima quinta-feira, vamos analisar umas das cenas mais fortes da obra original de 1994. Nunca é demais avisar que tem spoiler. Então, se por algum motivo você nunca viu a animação e quer se surpreender nos cinemas, deixa esse texto para depois.
Há uma carga emocional muito forte na cena escolhida para análise. Ainda que seja uma animação voltada para o público infantil, O Rei Leão traz referências diversas das tragédias em especial de Hamlet de Shakespeare, mas também de Édipo Rei de Sófocles, o homem amaldiçoado que matou o pai.
Toda a sequência que leva à morte de Mufasa e fuga de Simba é impressionante, mas o momento da constatação acaba reunindo a carga emocional maior. Simba está chateado com o pai, acha que não é mais criança, mas acaba indo parar no vale onde se torna vítima de um estouro de uma manada. Tudo plano de seu tio Scar com as hienas.
Tentando salvar o filho, Mufasa acaba se colocando no meio da manada em debandada e, quando tenta fugir, o irmão o joga do penhasco, sem que Simba perceba o que realmente aconteceu. A cena escolhida para análise é o momento exato em que o leãozinho encontra o corpo do pai.
Toda a cena é construída em uma espécie de neblina que a poeira levantada deixou, pouco se vê, tudo é meio turvo, o que torna a cena ainda mais angustiante, traduzindo também a emoção de Simba.
Começa com um plano geral, tudo turvo e a silhueta de Simba caminhando pelo local, gritando pelo pai. O eco duplica sua voz, construindo um efeito assustador pelo efeito sonoro em si e por demonstrar a solidão do leãozinho. O plano não muda, mas Simba vai se aproximando aos poucos da “câmera”, aproximando-se também do espectador que vai desvendando sua expressão e construindo a empatia com a personagem.
Há um clima de suspense construído, não há a confirmação de que Mufasa morreu, apenas que ele caiu. Por isso, vem um barulho e o contra-plano revela um último animal correndo. Para, só depois, um plano próximo focar na expressão de dor de Simba e por fim, um plano conjunto com Mufasa caído ao fundo e Simba se aproximando.
Há uma delicadeza na aproximação, o leãozinho ainda não entende, ou não quer entender que o pai está morto. Ele se aproxima com medo, circulando e a câmera também circula para revelar sua expressão confusa. A trilha em tom menor com andamento lento ajuda a construir a tristeza da cena.
O close de Mufasa caído demonstra que ele está inerte. Simba se aproxima, chorando, cutuca o pai, tenta chamar, com uma súplica dolorosa: “vamos, pai, temos que ir para casa”. Quando vê que este não se mexe, começa a se desesperar, gritando por socorro. O plano geral na penumbra com Simba gritando por ajuda indica a solidão e confusão mental dele diante da situação.
Ao não obter resposta que não seja o próprio eco repetindo sua voz, o leãozinho retorna ao corpo do pai e se aninha nele, em busca de colo. É um quadro extremamente emotivo, sem apelar. É natural que uma criança faça isso, no desamparo. E ficar alguns segundos com o plano inteiro dos dois deitados abraçados ajuda a construir essa mesma sensação no espectador que sente a dor de Simba.
Sem mudar o quadro, ao fundo, na penumbra, Scar vai surgindo e a câmera vai corrigindo para pegá-lo de baixo para cima, ameaçador. Corta para o ponto de vista dele, vendo Simba com Mufasa e ele pergunta: "Simba, o que você fez?"
É um golpe de misericórdia. O espectador sabe que ele armou tudo e que, na verdade, ele matou Mufasa ao empurrá-lo do penhasco, mas a construção maquiavélica de jogar a culpa no sobrinho não deixa de ser impressionante. O jogo do diálogo demonstra sempre Scar de baixo para cima e Simba de cima para baixo, reforçando a superioridade do tio na cena.
A ironia das falas de Scar, a maneira como ele manipula o sobrinho, fazendo-o acreditar que é culpado pela morte do pai e que todos vão culpá-lo também, em especial a mãe, assusta mais do que a própria figura do vilão, porque dá raiva no espectador que entende a manipulação, mas ao mesmo tempo é crível que Simba acredite naquilo. Até que ele diz: "Fuja, Simba, fuja para bem longe e não volte mais." O leãozinho assustado corre sem pensar, nem protestar, deixando o espectador entre pena, raiva e angústia.
E, como golpe final, as hienas surgem ao fundo e Scar sentencia: "Matem."
Uma cena milimetricamente planejada que ficou marcada na memória de muita gente. Resta saber como será na versão hiper-realista que vem por aí.
Amanda Aouad
Crítica afiliada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), é doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Poscom / UFBA) e especialista em Cinema pela UCSal. Roteirista profissional desde 2005, é co-criadora do projeto A Guardiã, além da equipe do Núcleo Anima Bahia sendo roteirista de séries como "Turma da Harmonia", "Bill, o Touro" e "Tadinha". É ainda professora dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unifacs e da Uniceusa. Atualmente, faz parte da diretoria da Abraccine como secretária geral.
Grandes Cenas: O Rei Leão (com spoiler)
2019-07-17T08:30:00-03:00
Amanda Aouad
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