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Priscilla, a Rainha do Deserto

Priscilla, a Rainha do Deserto - filme

Poucos filmes são tão explosivamente coloridos e emocionalmente sinceros quanto Priscilla, a Rainha do Deserto (1994). Revisitar essa obra quase três décadas depois de sua estreia não é só um exercício de nostalgia, mas um lembrete necessário do quanto o cinema pode ser transformador, politicamente provocativo e, ao mesmo tempo, deliciosamente divertido. Dirigido pelo australiano Stephan Elliott, o filme continua a pulsar com uma vitalidade que raramente encontramos no cinema contemporâneo. E, acima de tudo, ainda levanta questões importantes sobre identidade, aceitação e a força da expressão individual em meio à hostilidade do mundo.

O enredo é simples, mas poderoso: três artistas drag — Mitzi (nome de palco de Tick), Felicia (Adam) e Bernadette — embarcam em uma viagem de ônibus pelo deserto australiano rumo a um show em Alice Springs. No caminho, enfrentam preconceitos, desventuras e paisagens áridas, tudo isso a bordo de um ônibus que chamam carinhosamente de "Priscilla". O que poderia ser apenas mais um road movie se transforma, nas mãos de Elliott, em uma travessia interior tão árida quanto o território que cruzam — um percurso de reconciliação consigo mesmos, com o passado e com a sociedade.

Elliott, que também assina o roteiro, não tem medo de apostar alto no contraste. A exuberância dos figurinos, assinados por Lizzy Gardiner e Tim Chappel (vencedores do Oscar de Melhor Figurino), colide de maneira brutal e poética com a hostilidade dos vilarejos conservadores pelo caminho. Há algo de performático e político nessa escolha: ao vestir suas personagens com plumas, lantejoulas e sapatos plataforma no meio do deserto, o diretor não apenas sublinha o aspecto teatral de suas existências, mas também declara guerra ao conformismo e à opressão estética do cotidiano. A estética não é um capricho — é resistência.

Guy Pearce
, como Adam/Felicia, entrega uma performance incendiária, quase punk. Seu personagem é uma força da natureza, desafiadora e insolente, mas sob a maquiagem espessa há uma vulnerabilidade que Pearce revela com delicadeza em momentos-chave — como na cena em que, depois de sofrer um ataque homofóbico, tenta disfarçar o trauma com arrogância. Hugo Weaving, como Tick/Mitzi, tem o arco mais contido, mais interno. É dele a missão emocional mais difícil: reconciliar sua vida performática com a paternidade. Há uma ternura sutil em sua interpretação, especialmente no reencontro com o filho, que desarma qualquer clichê. Mas é Terence Stamp quem realmente hipnotiza. Seu retrato de Bernadette, uma mulher transexual de espírito cansado mas olhar afiado, é um feito de contenção e dignidade. Stamp evita caricaturas e cria uma personagem sólida, irônica e dolorosamente humana — talvez a única do trio que carrega o peso do tempo nas costas.

Apesar de sua energia libertadora, Priscilla tem lá seus problemas. Há momentos em que o tom do filme escorrega para o grotesco de maneira gratuita, como na famosa cena do número musical com estalos de pingos de ping-pong — um momento que pode ser lido como uma tentativa de provocar, mas que também pode soar como um desvio gratuito do tom mais sensível que o filme sustenta em outros trechos. Além disso, a representação de algumas personagens secundárias, especialmente a caricata Cynthia, flerta perigosamente com um estereótipo ofensivo — algo que, à luz dos debates contemporâneos sobre representação, exige certamente uma reavaliação crítica.

Priscilla, a Rainha do Deserto - filme
Mas nada disso apaga a relevância de Priscilla, a Rainha do Deserto como uma das obras pioneiras na representação de personagens LGBTQIA+ no cinema comercial dos anos 1990. Em um período em que a homossexualidade ainda era cercada de tabus e a transexualidade praticamente invisível nas telas, Elliott ousou colocar essas identidades no centro da narrativa, sem pedir desculpas por isso. Mais do que isso: ele humanizou seus personagens. Não os reduziu a alívio cômico, nem os tratou como mártires. São pessoas com humor, raiva, solidão, desejo e afeto.

A trilha sonora, recheada de clássicos da disco music — incluindo, claro, ABBA —, não é apenas um pano de fundo festivo. Funciona como elemento narrativo, como catarse. Em especial, a cena em que Felicia, de salto e vestido prateado, sobe ao topo do ônibus para cantar I Will Survive com uma bandeira de tecido esvoaçando ao vento é, talvez, o momento mais emblemático do filme. Uma imagem de liberdade que se impõe ao silêncio do deserto como um grito: existimos. E não vamos a lugar nenhum.

Priscilla, a Rainha do Deserto é, no fundo, um filme sobre deslocamentos — geográficos, emocionais, sociais. É sobre como é difícil existir fora das normas, mas também sobre como esse fora pode ser um espaço de criatividade, solidariedade e reinvenção. É um filme sobre pais e filhos, sobre perder e encontrar família no caminho. Sobre o que significa performar a própria identidade quando o mundo insiste em negar sua humanidade.

Hoje, quando a representatividade LGBTQIA+ no cinema ainda luta por espaço e por narrativas mais diversas, Priscilla permanece como um marco — não por ser perfeito, mas por ter sido necessário, corajoso e genuinamente divertido. Um filme que, sob o glitter e a maquiagem, carrega um coração enorme e sincero, pulsando contra o preconceito e a intolerância.

Se há um legado a ser reconhecido aqui, ele não está apenas na estética icônica ou na trilha contagiante, mas no gesto político de ocupar o deserto — um território simbólico de exclusão — com alegria, beleza e resistência. Como todo grande filme, Priscilla nos convida a embarcar. E, ao fim da viagem, é impossível não sair transformado.


Priscilla, A Rainha do Deserto (The Adventures of Priscilla, The Queen of Desert, 1994 / Austrália)
Direção: Stephan Elliott
Roteiro: Stephan Elliott
Com: Guy Pearce, Hugo Weaving, Terence Stamp, Alan Dargin, Bill Hunter, Bob Boyce, Daniel Kellie, Frank Cornelius, Hannah Corbett, John Casey, Joseph Kmet, Julia Cortez, June Marie Bennett, Ken Radley, Leighton Picken, Maria Kmet, Mark Holmes, Murray Davies, Rebel Penfold-Russell
Duração: 103 min.

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