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Alguém tem que Ceder
Alguém tem que Ceder
Quando penso em Alguém Tem Que Ceder (Something’s Gotta Give, 2003), a imagem que me vem primeiro não é a de um beijo final ou de uma trilha sonora romântica ao piano. É a de Diane Keaton, aos 56 anos, completamente nua, chorando diante do computador. A cena é tão desconcertante quanto revolucionária. Não pelo que mostra, mas pelo que representa: uma mulher madura, inteligente, emocionalmente devastada e ainda assim sexy, desejada, viva. Essa ousadia, por parte da diretora e roteirista Nancy Meyers, é o que transforma essa comédia romântica aparentemente convencional em um ponto de inflexão dentro do gênero. E isso vem de alguém que já viu o amor ser contado de quase todas as formas possíveis na tela.
Nancy Meyers é uma cineasta que soube construir uma carreira voltada para um público frequentemente negligenciado: mulheres acima dos 40. Com Alguém Tem Que Ceder, ela escreve e dirige uma história que reflete seus próprios dilemas e os de toda uma geração. A personagem de Keaton, Erica Barry, é uma dramaturga bem-sucedida, divorciada, que vê sua vida virar de cabeça para baixo quando se envolve, contra todas as previsões, com Harry Sanborn (Jack Nicholson), um produtor musical mulherengo que só namora jovens abaixo dos 30. O embate entre esses dois personagens é a espinha dorsal do filme, mas o que realmente se sobressai é a forma como o roteiro desconstrói, com uma leveza quase enganosa, clichês profundamente enraizados na cultura ocidental.
Meyers conduz a trama com um misto de doçura e acidez que lhe é característico, mas dessa vez há algo mais ousado no subtexto: uma crítica feroz ao etarismo e ao machismo velado da indústria e da sociedade como um todo. Erica, em sua jornada emocional, não está apenas redescobrindo o amor. Ela está também reivindicando o direito de ser protagonista da própria história, mesmo fora da curva da juventude.
Jack Nicholson interpreta Harry com uma mistura de carisma e autossabotagem. O ator, que na época já havia personificado inúmeros anti-heróis e canalhas charmosos, parece se despir aqui, não literalmente, mas emocionalmente. Sua transição de um bon vivant cínico para um homem apaixonado e vulnerável é convincente, ainda que menos profunda do que a jornada de Keaton. E isso, aliás, é um ponto a se destacar: o filme, mesmo com a presença magnética de Nicholson, pertence a Diane Keaton.
Sua atuação é um presente para qualquer espectador que preze por honestidade emocional. Ela nos entrega uma mulher à flor da pele, oscilando entre o riso e o choro com uma fluidez desconcertante. É uma performance que não tem medo do ridículo, do exagero, da exposição. E por isso mesmo, é das mais humanas que o cinema romântico já viu. Quando ela ri descontroladamente, ou quando derrama lágrimas na frente do computador, não sentimos pena, sentimos identificação.
A fotografia quente e aconchegante, típica do estilo de Meyers, ajuda a criar o clima ideal para que o espectador se sinta em casa, quase parte da família Barry. Os cenários, especialmente a casa de praia em Hamptons, são meticulosamente decorados, contribuindo para essa sensação de conforto visual. Mas há também uma crítica possível: o universo de Meyers, como em outras de suas obras (O Amor Não Tira Férias, Simplesmente Complicado), é esteticamente impecável, sim, mas também elitista. Estamos sempre falando de pessoas brancas, ricas, artisticamente realizadas, vivendo entre Nova York e Paris. Falta diversidade, tanto social quanto étnica.
Do ponto de vista estrutural, o filme tem um ritmo um tanto desigual. A primeira metade é quase perfeita: dinâmica, engraçada, surpreendente. A partir do segundo ato, com a introdução do personagem de Keanu Reeves, um jovem médico apaixonado por Erica, o roteiro se alonga mais do que o necessário. A escolha de dar a Harry um arco de redenção tão extenso, com direito a viagem à França e cartas dramáticas, faz com que a conclusão perca parte de sua força. Talvez fosse mais interessante, e mais coerente com o discurso do filme, que Erica escolhesse não ficar com ninguém, ao invés de perdoar Harry por seus incontáveis bloqueios emocionais.
Ainda assim, Alguém Tem Que Ceder acerta em seu principal objetivo: nos fazer pensar sobre os amores possíveis fora da juventude. É raro, quase revolucionário, ver um filme em que a libido e a vulnerabilidade de uma mulher de meia-idade sejam tratados com tanto respeito, tanto espaço de tela. Nancy Meyers não está apenas fazendo uma comédia romântica aqui. Ela está redefinindo quem pode ser protagonista de uma.
O título já aponta para uma mudança iminente, algo que precisa ceder, que está prestes a quebrar. E talvez seja isso o mais importante: Alguém Tem Que Ceder não é só sobre um homem que muda de ideia sobre o amor. É sobre um gênero cinematográfico que, aos poucos, foi cedendo espaço para vozes mais maduras, mais complexas, mais verdadeiras. Num mar de comédias românticas centradas em idealizações e juventudes eternas, o filme de Nancy Meyers surge como um respiro. Imperfeito, sim, mas necessário.
Alguém Tem Que Ceder (Something's Gotta Give, 2004 / Estados Unidos)
Direção: Nancy Meyers
Roteiro: Nancy Meyers
Com: Jack Nicholson, Diane Keaton, Keanu Reeves, Amanda Peet, Frances McDormand
Duração: 128 min.

Ari Cabral
Bacharel em Publicidade e Propaganda, profissional desde 2000, especialista em tratamento de imagem e direção de arte. Com experiência também em redes sociais, edição de vídeo e animação, fez ainda um curso de crítica cinematográfica ministrado por Pablo Villaça. Cinéfilo, aprendeu a ser notívago assistindo TV de madrugada, o único espaço para filmes legendados na TV aberta.
Alguém tem que Ceder
2025-07-23T08:30:00-03:00
Ari Cabral
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