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O Céu de Suely

O Céu de Suely - filme

O Céu de Suely
é uma obra que respira sertão, suor e contradição. Isso se percebe logo nos primeiros minutos. Hermila Guedes incorpora Hermila/Suely com uma autenticidade que corta até o mais duro dos espectadores. Sua expressão fatigada, os olhos fundos de quem carrega dor e tentativa de fuga, são uma aula visual de atuação contida, onde cada silêncio parece gritar.

O diretor Karim Aïnouz, num segundo longa ainda em transição após Madame Satã, abandona qualquer artifício formal que possa mascarar a realidade. Ele aposta na câmera na mão, no naturalismo quase documental, com enquadramentos largos que revelam a dureza da Caatinga e closes brutos no rosto confuso de Suely. Na cena marcante da rifa, o plano se distancia primeiro, reinstalando a protagonista num ambiente amplo, árido, antes de fechar lentamente na tensão do rosto dela quando anuncia “uma noite no paraíso comigo”. Ali se resume todo o drama: erotismo, escassez, resistência, autodestruição e esperança. Tudo entrelaçado num momento puro de contradição existencial.

O Céu de Suely - filme
A fotografia de Walter Carvalho reforça isso. Não há glamour: é poeira, calor, cores secas. Tudo parece pedir socorro, combinando com um figurino que denuncia a tentativa de Suely de se reinventar: a mecha azul no cabelo, a blusa colorida, o pseudônimo. Todos são gestos de autopreservação, de tentativa de criar um novo céu quando o antigo desabou.

A dinâmica entre Hermila e João Miguel traz delicadeza, mas é a solidão de Suely que domina. O ex-namorado, que se comporta quase como uma sombra de outra vida, representa o que poderia ter sido, mas já não é. Ele volta, em uma motocicleta, num dos planos mais simbólicos do filme: ela está parada à beira da estrada, ele vem ao fundo; uma promessa. E ali, no contraste entre horizonte aberto e o rosto que reprime um sorriso ferido, Aïnouz mapeia todo o fim de uma esperança.

O Céu de Suely - filme
Não há falhas fáceis de catalogar, mas a opção por ritmo contemplativo pode extenuar. Alguns espectadores talvez sintam o desenvolvimento “não‑convencional” lento demais, mas se trata de uma escolha deliberada para recriar a sensação de estagnação na falta de perspectivas de Suely. E esse ritmo casa com aquele interior quase vivo, onde cada gesto lento carrega peso social, econômico e emocional.

Há também uma dimensão feminista forte: Suely decide sobre seu corpo em meio a uma comunidade que a julga, que a reprime, onde o machismo é pano de fundo constante. O filme não a romantiza; ao contrário, expõe inclusive o nojo que ela sente no momento da transação. Um desconforto visceral que ecoa a crítica social: a mulher, dona do corpo, mas sozinha ao exercer essa posse.

Por isso, O Céu de Suely não é apenas um filme sobre uma mulher audaciosa: é um retrato da geração que sobrevive entre promessas vazias e ausência de futuro, um espelho que revela como o sertão não é clichê poético, mas pulsa de forma real, quente e inclemente. A rifa é a metáfora perfeita: ganha quem paga, mas acumula a culpa de ter precisado vender. E Suely, em seu ato desesperado, não foge do vazio. Ela dança com ele, por uma noite, no seu próprio céu.


O Céu de Suely (2006 / Brasil, França, Alemanha)
Direção: Karim Aïnouz
Roteiro: Karim Aïnouz, Maurício Zacharias, Felipe Bragança
Com: Hermila Guedes, João Miguel, Maria Menezes, Zezita Matos, Georgina Castro, Marcélia Cartaxo
Duração: 88 min.

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