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Atlantique

Atlantique - filme

Logo nas primeiras cenas de Atlantique, somos levados ao universo de Dakar, onde os operários empobrecidos deixam de receber seus salários e decidem partir no barco em uma travessia desesperada. É nesse silêncio carregado de frustração que o filme encontra seu ritmo, e o mar, com sua vastidão mutante, torna-se um símbolo de liberdade e de ameaça. Uma metáfora visual que não cansa de reverberar. A cinematografia, de uma beleza inquietante, respira memória e saudade: o oceano quase brilha, e a pele escura dos rostos absorve luz e cor como se fossem telas sensíveis.

Ada (Mame Bineta Sane) é apresentada à tela com uma delicadeza explosiva. No início, parece tímida, quase apagada: uma noiva prestes a cumprir um casamento arranjado com Omar, que ela mal conhece. Ainda assim, há uma centelha nos olhos dela, um amor que foi embora, uma falha deixada no peito de quem espera sem notícias. A atuação dela cresce em corpo e voz. Quando o quarto de núpcias pega fogo, é menos o incêndio que choca e mais o peso que Ada carrega ali: culpa, amor e acusação. Tudo misturado em uma imagem poderosa.

Atlantique - filme
O visual, por si só, já sustenta muito desse prazer. Enquadramentos demorados permitem que nós, espectadores, nos invistamos na atmosfera. Em planos que parecem desafiar a duração, a lua muda, o mar se agita, e aquela estética cultivada por Claire Mathon torna-se quase um personagem. Há um diálogo silencioso entre o olhar e o que está na tela. E isso encontra justificativa na metáfora: o oceano não é apenas cenário, é voz, é presença.

Mas nem tudo funciona com a mesma elegância. O roteiro, por vezes, se perde em simbologias que se multiplicam sem propósito claro. A figura do detetive inserido na trama oscila entre interessante e deslocada. Sua presença quebra o ritmo e parece servir mais como artifício narrativo do que como contribuição emocional. Talvez a intenção fosse intensificar o mistério, mas o filme seria mais enxuto se deixasse Ada ser sua própria âncora dramática.

Atlantique - filme
Ainda assim, reconheço a coragem de Diop. Ela se aventura em uma linguagem que mistura o mágico com o real, o espiritual com o social. Mulheres sonâmbulas caminhando pela cidade, possessas por ausência. Uma evocação potente do luto coletivo, da injustiça não paga. Quando elas vão ao encontro do patrão explorador, não há gritos, mas uma presença carregada de dor e exigência: é amor que vira vingança, é justiça que se planta sem armas.

É nesse terreno de sombras que o filme encontra sua beleza maior: numa narrativa que não pede que você compreenda tudo, mas que você sinta cada parte. O realismo sujo da migração, a opressão econômica, a promessa de fuga, tudo isso se mistura. São presenças que se negam a serem esquecidas. Em vez de dar respostas, Diop oferece ressonâncias. Você sai pensando nas cores do mar, no rosto de Ada, no silêncio que nunca se apaga.

Entre as falhas, pesa a fragmentação: o equilíbrio entre visual e roteiro nem sempre funciona. A subjetividade, que deveria fluir, às vezes trava. Mas é justamente essa tensão que faz Atlantique pulsar. É um filme de sensações, menos preocupado em explicar do que em evocar. E isso, quando feito com tanto cuidado visual e narrativo, merece respeito e muita reflexão.


Atlantique (Atlantique, 2019 / Senegal, França, Bélgica)
Direção: Mati Diop
Roteiro: Mati Diop, Olivier Demangel
Com: Mame Bineta Sane, Ibrahima Traoré, Amadou Mbow
Duração: 106 min.

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