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Kátia Lund
Notícias de uma Guerra Particular
Notícias de uma Guerra Particular
Quando se retoma Notícias de uma Guerra Particular hoje, mais de duas décadas depois de sua estreia, há algo de dolorosamente profético no que resiste ao tempo e algo de urgente no convite que ele ainda nos faz: olhar, escutar e confrontar o abismo da violência urbana como fenômeno social e moral. Não falo de um elogio nostálgico, mas de um reconhecimento crítico do mérito e dos limites desse documentário que ousou, no fim dos anos 90, dissolver o binarismo do “bandido vs polícia” e revelar as fissuras profundas de um sistema que mata em nome da ordem.
Kátia Lund e João Moreira Salles assinam essa obra com a coragem de quem entende que o documentário também é arma, e que, ao apontar a câmera para o morro, não se trata de exotismo ou voyeurismo, mas de responsabilização. A estrutura do filme é, em sua essência, tripartite: moradores, traficantes e policiais. Todas as falas, com suas contradições, delírios de poder, medos e autojustificativas, são colocadas em uma mesa dissonante, como se o espectador fosse o juiz incômodo deste tribunal ético da favela. Essa montagem em triângulo de vozes escolhe não hierarquizar, não privilegiar “o lado certo”, mas provocar tensão moral e política.
No lado dos moradores, o documentário capta algo que, para mim, é sua pulsação mais inquietante: o instante em que a violência deixa de ser notícia e se torna rotina. Uma criança de dez anos declara ter prazer em estar perto da morte: essa cena corta o ar como punhal. Não porque seja espetáculo, mas porque lembra que muitos cresceram ouvindo tiros como trilha sonora. Essa interlocução com o cotidiano, e não apenas com o excepcional, é justamente o que diferencia Notícias de uma Guerra Particular de muitos filmes posteriores que apenas dramatizam o conflito urbano.
Do lado policial, há depoimentos de espanto e orgulho lado a lado: matar é admitido como ritual de dever público, argumento institucional de limpeza social. Um capitão do BOPE empresta ao título o sentido de guerra particular. Aqui não se refere a uma guerra civil, mas a uma ofensiva seletiva e feroz contra corpos racializados e marginalizados. As falas da polícia revelam aquilo que o documentário quer destacar: o poder estatal é, no fundo, um regime de controle que define quem é e quem não é dispensável.
No núcleo dos traficantes, a revelação é crua: nem redimidos nem caricatos, alguns manifestam ambições de autoridade, outros, angústia e impotência. Não há heróis ali. Alguns membros do tráfico falam com frieza, outros com a vulnerabilidade de quem aprendeu que faltou estrutura existencial para seguir outro caminho, mas que também se voluntariou para um ambiente letal. Esse equilíbrio entre exposição e ambiguidade é mais uma conquista formal do filme.
A direção de Lund e Salles sabe que o controle da narração está no desligamento da voz-autor, do uso de locução, abrindo brechas para o espectador ouvir sem filtro os enunciados violentos e contraditórios. A voz-off inicial funciona apenas como um compasso para estabelecer a gravidade, e depois o filme deixa os corpos dos depoimentos correr. A montagem, seca, quase jornalística, recusa suspenses artificiais ou sentimentalismos. Isso é um ponto forte, mas é também sua armadilha.
Esse distanciamento crítico pode, às vezes, deixar o espectador sem guia moral claro. O filme propõe que não há lado limpo nessa guerra privada. Essa ambiguidade deliberada, se bem intencionada, pode gerar frustração: há momentos em que se desejaria que o longa mergulhasse mais fundo na hierarquia política que articula polícia, Estado e milícia. E realmente há lacunas, como, por exemplo, o papel dos legisladores, o financiamento das milícias ou as práticas de invisibilidade institucional não são exploradas com profundidade. O documentário concentra-se em depoimentos e imagens, mas não projeta grandemente o contexto macro político e econômico além do que os personagens mencionam.
Ainda assim, há um momento emblemático que sintetiza seu valor crítico: quando a moradora Janete afirma que o tráfico “obriga” a polícia a entrar com mais cautela no morro. Esse tipo de inversão simbólica, em que o agente ilegal "impõe" regras à autoridade oficial, revela quem realmente detém o controle. É um instante em que a tal guerra particular deixa de ser metáfora e se torna lei informal de dominação territorial: quem dita a regra é quem sobrevive no morro, não quem teoricamente comanda do lado de fora.
O que torna esse documentário mais pungente é a persistência de sua atualidade. Revisitar Notícias de uma Guerra Particular hoje é perceber que, embora os nomes e as estratégias tenham mudado, o desenho da operação de controle social e morte permanece coerente com as vozes captadas nos anos 90. Sem nenhuma evolução. A compulsão por repetição não cessou. Ao contrário, se reproduz e intensifica. A violência não envelheceu, só adaptou-se.
Em cena, há uma política do silêncio: é no que não se fala, no que não aparece, no que o documentário cala. Mas é também nesse silenciamento que se inscreve sua maior força evocativa: somos provocados a lembrar dos vazios, das ausências, dos nomes que não comparecem e, por extensão, das vidas que nem tiveram voz.
Seus méritos são muitos: a coragem narrativa, o equilíbrio entre escuta e tensão, a densidade simbólica e ética. Seus limites são visíveis: a opção pelo recorte restrito e a recusa ao panorama total politicamente complexo. Mas há algo que o tempo não apagou: o filme ainda nos interroga. Quem caçará agora quem morre nas favelas? Quem vai contar essas vidas que nunca viraram nem estatística? Notícias de uma Guerra Particular não oferece respostas, mas força uma reflexão que seguimos demorando para atender.
Para quem já viu muitos documentários sobre violência urbana, esse filme resiste. Não porque seja perfeito, mas porque sua contundência moral e formal cruza o tempo e desafia o silêncio. Ao final, acredito que ele cumpre um dos mandatos mais raros do documentário: ser profético ao apontar que talvez esta guerra nunca seja vencida enquanto recusarem-se a escutar aqueles que vivem nela todos os dias.
Notícias de uma Guerra Particular (1999 / Brasil)
Direção: Kátia Lund, João Moreira Salles
Roteiro: Kátia Lund, João Moreira Salles
Duração: 57 min.
 
Ari Cabral
Bacharel em Publicidade e Propaganda, profissional desde 2000, especialista em tratamento de imagem e direção de arte. Com experiência também em redes sociais, edição de vídeo e animação, fez ainda um curso de crítica cinematográfica ministrado por Pablo Villaça. Cinéfilo, aprendeu a ser notívago assistindo TV de madrugada, o único espaço para filmes legendados na TV aberta.
Notícias de uma Guerra Particular
2025-10-31T08:30:00-03:00
Ari Cabral
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