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Mussum, o Filmis
Mussum, o Filmis
Após Mussum, o Filmis, tive a sensação de que não assistira apenas a uma cinebiografia tradicional, mas a um gesto de reverência que tenta reconciliar o mito com a vulnerabilidade. É fácil, quando se lida com figuras tão queridas, cair na idealização ou na caricatura e temos que reconhecer o mérito deste filme em equilibrar as duas vertentes, ainda que nem sempre com perfeição.
Desde o começo, o filme nos posiciona no terreno da intimidade: vemos um menino chamado Carlinhos que respira samba nas vielas, que ama futebol, mas que também se esconde para tocar reco-reco. Logo percebemos que o foco não será o ícone Mussum, mas a formação desse ícone ou como a pessoa vai aprendendo a equilibrar seus dois mundos. Esse viés, que privilegia a humanização do artista, é perceptível: a narrativa não quer fazer de cada passo um acontecimento épico, mas mostrar o peso dos pequenos gestos, dos sacrifícios invisíveis, das ausências.
Ao longo da trajetória, enfrentamos diálogos simples, como uma mãe firme que exige educação ou um jovem dividido entre carreira militar e samba e cenas que se estendem no tempo suficiente para que o silêncio fale. É nesse espaço que a interpretação de Aílton Graça se eleva ao patamar da ousadia. Ele encarna Mussum sem ostentar. Há momentos em que Graça não precisa de fala: o olhar já diz o conflito interior, o peso da casa que se torna cada vez menor, o rastro de culpa. Ele nunca soa caricato, nem um Mussum exagerado: ele é o homem comédia e o homem que ama e falha, o artista e o filho. No arranjo das versões mais jovens (Thawan Lucas, Yuri Marçal), há uma coerência de construção: cada etapa do protagonista tem continuidade e arcabouço, mesmo quando o filme falta profundidade em algumas transições.
A relação com a mãe, Dona Malvina, é o nó emocional mais forte. Cacau Protásio e Neusa Borges se complementam em nuance. Protásio carregando potência dramática, Borges uma quietude sábia. Juntas, elas dão corpo ao tema central: por trás do artista há sempre uma base que segura e, às vezes, sofre em silêncio. Há passagens em que o filme nos permite quase ouvir o som do tempo: a casa que encolhe, a música que invade o espaço e exige dedicação, a ausência progressiva do filho que vira presença pública.
Tecnicamente, o longa aposta numa direção cuidadosa. A fotografia de Nonato Estrela alterna tons quentes e frios em momentos de vitória e dor, um respiro visual que dialoga com as emoções internas. A montagem de cenas musicais, algumas mais lentas, outras mais abruptas, funciona como contraponto: o ritmo não é uniforme, mas característico da vida multifacetada de Mussum. A trilha sonora, com sambas e dedilhados melancólicos, não se limita à ambientação: ela comanda silêncios, cria pulsações emocionais.
Entretanto, o filme não é isento de tropeços. Há momentos em que a trajetória pública passa rápido demais, como se tivesse virado cena de panorama. Os conflitos dentro dos Trapalhões ou as tensões entre os colegas ganham pinceladas, quando poderiam merecer mais espaço. Para um espectador que já conhece a figura pública de Mussum, essas omissões incomodam, pois deixam buracos na construção do mito. Em outras palavras, privilegia-se tanto o lado pessoal que algumas camadas do artista ficam com menos fôlego.
Também senti certa estranheza nas transições entre as fases do protagonista. Há uma falha de continuidade emocional, como quando somos convidados a realizar um salto e aceitar que aquele Carlinhos mudou para Mussum sem sentir todas as fissuras do percurso. Essa distância ocasional dilui um pouco o engajamento, ainda que não o rompa. Mas talvez esse custo seja inevitável numa cinebiografia que pretende abarcar muito em poucas horas.
O momento mais marcante, para mim, ocorre quando Mussum canta um samba para sua mãe já envelhecida: naquele instante, a cena quase para. A câmera encolhe o mundo ao redor para que só reste eles e o laço que sempre permanece. É uma cena de comunhão entre arte e dor, uma síntese silenciosa de tudo o que o filme propõe: que a sombra de Mussum como personagem nunca apagou o homem que amava, temia, errava. Aquilo é o ápice emocional, e funciona porque, até ali, o filme vinha nos entregando confiança, nos havia preparado para esse momento de escuta.
Em resumo, Mussum, o Filmis não é uma cinebiografia perfeita e não há modelo ideal, mas é uma obra que acerta ao escolher o humano como coração da narrativa. Se evita alguns excessos ficcionais e manjados, é graças ao elenco que o sustenta. A fragilidade da transição narrativo-cinematográfica e o ritmo irregular de panoramas públicos não anulam o valor da proposta: mostrar que por trás de cada riso havia um homem que andava entre samba, saudade e escolhas. E talvez essa ambição de humanizar um ícone seja justamente o que torna esse filme tão necessário.
Mussum, o Filmis (2023 / Brasil)
Direção: Sílvio Guindane
Roteiro: Paulo Cursino
Com: Aílton Graça, Yuri Marçal, Thawan Lucas, Cacau Protásio, Neusa Borges
Duração: 115 min.
Ari Cabral
Bacharel em Publicidade e Propaganda, profissional desde 2000, especialista em tratamento de imagem e direção de arte. Com experiência também em redes sociais, edição de vídeo e animação, fez ainda um curso de crítica cinematográfica ministrado por Pablo Villaça. Cinéfilo, aprendeu a ser notívago assistindo TV de madrugada, o único espaço para filmes legendados na TV aberta.
Mussum, o Filmis
2025-11-03T08:30:00-03:00
Ari Cabral
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