
A questão
racial está em alta em Hollywood. Só para ficar nos dois exemplos recentes, se em
Django Livre, Tarantino tem como protagonista um
escravo liberto em sua vingança, aqui,
Steven Spielberg utiliza a história de um dos
presidentes mais importantes do seu país para destacar um momento específico: a tentativa de aprovação da 13ª ementa.
Exatamente,
Lincoln não é sobre
Lincoln, mas sobre a sua luta para abolir a
escravatura em seu país. Em plena
Guerra de Secessão, Norte e Sul disputavam as regras do país, onde o sul escravocrata e rural enfrentava o norte abolicionista e liberal. O roteiro de
Tony Kushner passará pela guerra, pela vida do presidente e por qualquer acontecimento histórico apenas como ambientação para construir o que realmente lhe interessa: a votação da ementa. Acoplando a proibição de escravizar homens de qualquer espécie na
constituição, não havia volta.

E
Steven Spielberg se vale de toda a sua capacidade de construir um bom melodrama para nos envolver nessa história. Nos dá até uma ponta de inveja que a
abolição tenha chegado aqui tão tardiamente e de uma maneira tão menos poética e ideária. Há de se admirar
Abraham Lincoln e seu sonho de um país igualitário. Assim como homens a exemplo de Thaddeus Stevens, interpretado por
Tommy Lee Jones e todos os republicanos que discursam no parlamento em prol de seres humanos que foram rebaixados sem motivo algum, senão o dinheiro e poder, a uma classe menor.

Aliás, é admirável como o
filme consegue nos passar todas as nuanças por trás da questão
racial que nada mais é do que uma disputa por poder, por possível perda de privilégios e questões econômicas mesquinhas. Ponderações como "o que faremos com os
negros libertos?" que parecem preocupações
sociais apenas, escondem medos como "e o
negro poderá votar?", "o que vem depois, sufrágio universal?" Interessante ver a unanimidade se formando na câmera com a possibilidade de um voto feminino. Mesmo homens que pareciam tão justos e humanos não querem disputar o poder com suas esposas.
Mas, o que impressiona mesmo em
Lincoln é a técnica apurada.
Spielberg constrói as cenas de uma maneira visivelmente calculada. São detalhes como após a conversa inicial a câmera se aproximar lentamente, pegando o perfil de
Daniel Day-Lewis e a música emocionante subindo. Pronto, está apresentado o herói. Ou sua cena deitando no chão do quarto do filho, com uma meia luz vindo da janela, em uma composição aconchegante, bela, ainda que com certa melancolia. A fotografia toda é muito bem cuidada usando inclusive fumaças e neblinas para dar o tom em alguns momentos.

E claro, as atuações.
Daniel Day-Lewis não interpreta
Abraham Lincoln, ele o é. É impressionante a transformação do ator, a forma como é sutil, doce e poderoso ao mesmo tempo. Há nele um ar de admiração incrível. E conhecemos também um
Lincoln mais próximo, humano, não apenas o mito. Um homem que conta piadas a todo momento, que é amável com os filhos e tem medo da esposa.
Sally Field o acompanha com uma bela interpretação dessa mulher que fica à sombra do marido histórico. Mas, o outro nome que chama a atenção é mesmo
Tommy Lee Jones, um homem que é maleável em sua dor e seus ideais para construir o bem comum.

Porém, algumas coisas incomodam na condução do
filme. Sua longa duração acaba cansando, principalmente a quem não é norte-americano, até por seu formado verborrágico, ainda que com excelentes diálogos. Há também a trama quase desnecessária do filho mais velho de
Lincoln vivido por
Joseph Gordon-Levitt. Há um drama exagerado no medo da mãe em perder outro filho e por isso fazer o pai o proibir de ir à
guerra. Ainda que entenda a carga dramática ali presente, há um excesso do tom, principalmente em uma cena de discussão entre
Daniel Day-Lewis e
Sally Field, onde sua personagem parece aquelas matronas exageradas de melodramas do século XIX com direito a jogar-se no chão e tudo mais.
Spielberg parece a todo custo nos fazer querer fazer chorar, tanto que faz escolhas duvidosas como determinada cena na parte final envolvendo o pequeno
Tad Lincoln. Isso sem falar na forma como a música entra, sempre subindo de maneira pomposa em momentos-chave. Mas, quando as cenas são genuínas, e não forçadas, realmente emocionam como uma determinada cena em que é dito "bem vindos à sua casa", a cena da conversa na frente da casa da senhora Keckley ou mesmo a cena final após uma fusão com a luz da vela.
Não diria que
Lincoln é um grande
filme, mas um
filme muito bem feito. Necessário até em alguns pontos, principalmente para os norte-americanos refletirem sobre sua própria
história, ainda mais após a reeleição de seu primeiro
presidente afro-descendente. Época de mudanças de valores, ainda que tardia. E que mostra que o sonho de
Lincoln, por mais distante, ainda tem esperanças de florescer nos corações humanos.
Lincoln (Lincoln, 2013 / EUA)
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Tony Kushner
Com: Daniel Day-Lewis, Sally Field, David Strathairn, Tommy Lee Jones, Joseph Gordon-Levitt, James Spader
Duração: 150 min.