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Mais uma Página
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Assistir a Mais uma Página (Catching Feelings), esse filme sul-africano, é como entrar em uma sala elegante em Joanesburgo e encontrar ali todas as tensões de um casamento moderno. Há conforto no cenário urbano, mas o ciúme ronda cada ato, e os diálogos filosóficos têm uma ponta de amargura que fazem rir e pensar ao mesmo tempo. Kagiso Lediga nos apresenta Max, um professor universitário preso à rotina e à crise criativa, dividido entre a mulher, Sam, jornalista firme e leal, e o retorno inesperado de Heiner Miller, um escritor famoso cuja presença traz à tona os ressentimentos e as fissuras que o casal tentava ocultar.
É fascinante ver como a comédia de erros se desenrola. Risos se enroscam em traições quase sutis, reversões emocionais silenciosas e no humor cáustico que só alguém com sensibilidade política consegue entregar. Há charme nas conversas secas, tons irônicos que soam como duelos verbais entre papéis sociais, e ali se descortinam conflitos profundos: ciúme, infidelidade psicológica, desigualdades raciais, a fragilidade de instituições e promessas feitas e esquecidas.
O filme valoriza o cotidiano sofisticado da classe média urbana de Joanesburgo, apresentando uma cidade longe dos estereótipos coloniais, repleta de bares modernos, ruas vibrantes e cultura visual refinada. Ainda assim, essa Joanesburgo aparentemente segura guarda fissuras: relações que se esfarelam, criadores que duvidam de si mesmos, convenções matrimoniais submetidas a pressões exteriores e interiores.
A performance de Pearl Thusi como Sam é convincente: ela traz uma força tranquila que contrasta com o nervosismo arrogante de Max. Lediga, ocupando simultaneamente os papéis de diretor, roteirista e protagonista, entrega um protagonista que parece cínico, mas não insensível; sua ironia acaba por revelar vulnerabilidades soterradas. Andrew Buckland, como Heiner, funciona como catalisador de tensões e seu fascínio por Max é ambíguo: ao mesmo tempo gera desconforto e admiração. A química entre os três é real, ainda que o roteiro às vezes pareça disperso e há momentos em que a narrativa parece desorganizada, quase desconexa, deixando pontas soltas.
O ritmo do filme varia entre cenas de alto valor de produção, com o visual sofisticado da Joanesburgo moderna, e pausas que insistem na melancolia, como se permitissem que cada olhar carregasse todo o peso da história. É nesse contraste que reside o charme: um romance que finge leveza, mas que explode num debate sobre discriminação, amores líquidos, instituições frágeis e alianças que já não se sustentam no silêncio.
Entre aquilo que se elogia com razão está justamente esse humor contemporâneo e filosófico, os diálogos refinados, a desconstrução de estereótipos visuais e emocionais, e a criação de um microcosmo que reflete dilemas universais. Por outro lado, é justo apontar as falhas: a sensação de dispersão narrativa, a lentidão que desgasta o espectador que busca uma resolução clara, e o desfecho abrupto que deixa mais perguntas do que conclusões.
Mas talvez isso seja proposital. Como uma página que foi virada sem aviso, mas deixou marcas, o filme Mais uma Página ecoa na mente pelo desconforto, fazendo refletir sobre amor e poder, tradição e liberdade, riso e crise. E isso, para um filme que opera sob o verniz de uma comédia leve, é um ato de coragem.
Mais uma Página (Catching Feelings, 2017 / África do Sul)
Direção: Kagiso Lediga
Roteiro: Kagiso Lediga
Com: Kagiso Lediga, Pearl Thusi, Andrew Buckland, Akin Omotoso
Duração: 124 min.

Ari Cabral
Bacharel em Publicidade e Propaganda, profissional desde 2000, especialista em tratamento de imagem e direção de arte. Com experiência também em redes sociais, edição de vídeo e animação, fez ainda um curso de crítica cinematográfica ministrado por Pablo Villaça. Cinéfilo, aprendeu a ser notívago assistindo TV de madrugada, o único espaço para filmes legendados na TV aberta.
Mais uma Página
2025-10-15T08:30:00-03:00
Ari Cabral
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