Documentário é filme
Escrevo esse post motivada por um comentário que vi em meus passeios pela internet onde alguém dizia que documentário não é filme. Achei algo tão inusitado que resolvi falar um pouco sobre documentários. Na verdade, o cinema nasceu documental. Quando Thomas Edison criou o cinetógrafo e logo depois o cinetoscópio, ele usou pessoas em seu estúdio para fazer movimentos simples, apenas para mostrar o novo invento que captava imagem em movimento. Não havia história, nem muito contexto. Quando os irmãos Lumière, inspirados em Edison, criaram o cinematógrafo, as coisas não mudaram muito, só saíram dos estúdios. O aparelho era mais leve, capaz de ser levado pelas ruas e funcionava também como projetor. Os que eles fizeram então, foram captar coisas cotidianas, com um cuidado um pouco maior que Edison em mostrar um começo, meio e fim. Era o trem chegando na estação, a saída da fábrica, ou o café em família. Então, era uma espécie de documentário, mas não existia ainda esse tipo de definição.
Foi com Georges Méliès que o cinema ganhou vida, pois tanto Thomas Edison quanto os irmãos Lumière eram cientistas mais preocupados com o invento em si do que com o que fazer com ele. Méliès passou a entreter platéias com suas histórias fictícias e o mundo passou a seguir esse formato. Mas ainda não existia essa idéia de ficção e documentário. Foi em 1926, após assistir Nanook, o Esquimó (Nanook of the North) de Robert J. Flaherty, que John Greison fez a distinção do termo pela primeira vez. Ele resolve, então, criar a escola inglesa de documentário em Londres, onde diversos cineastas aprimoraram o formato. Coincidentemente, essa época foi a mesma em que o som chega aos cinemas, com câmeras de som direto, o formato acaba sendo melhor desenvolvido.
Mas, como nada no cinema é exclusivo, enquanto Greison estava estudando o formato que ele tinha criado em Londres, na Rússia, Dzigar Vertov desenvolvia o seu Cine-Olho. O que mais importava aos russos era a montagem, tanto que Sergei Eisenstein é o maior teórico no assunto até hoje. Vertov foi quem melhor soube por em práticas essas idéias, mas diferente do seu compatriota, ele queria um cinema mais verdadeiro, direto, apenas a relação do olho da câmera vendo o mundo, vide o clássico O homem com a câmera. É bom ressaltar que o cinema de Vertov não é Cinema Direto, nem Cinema Verdade, ele é apenas o precursor dessas duas idéias, inspiração para os movimentos que vieram muito depois. No Cinema Direto deveria-se produzir filmes com a mínima interferência da câmera e um bom representante desse tipo de filme seria Frederick Wiseman com seu incômodo "Titicut Follies" de 1967. Já o Cinema Verdade as pessoas falavam diretamenta para a câmera. Jean Rouch e Edgar Morin apresentaram a idéia com "Crônica de um verão" em 1960.
Bom, mas esse resumo de história foi para analisar um fato interessante. O primeiro documentário, Nanook, tem muito de ficção. Robert J. Flaherty era um explorador, um geólogo. Foi ao extremo norte explorar e conhecer a civilização local. Resolveu levar uma câmera junto. Voltou, apresentou seu projeto e poucos se interessaram. Por sorte, o filme pegou fogo. Flaherty resolveu voltar então, ao norte para refazer o filme perdido. Muita coisa teve que ser refeita de forma falsa, ensaiada. Algumas foram manipuladas para deixar Nanook mais selvagem. Por exemplo, os esquimós já usaram arma de fogo, mas Flaherty fez Nanook caçar com uma lança. A própria cena inicial com a família saindo da canoa já demonstra que há montagem.
Mas, isso não importava tanto, pois, como já foi dito não existia o termo documentário, quanto mais as regras. O que chamou a atenção no filme de Flaherty foi o fato de contar a história de uma pessoa real e comum. O ser comum não tinha voz no cinema, eram feitos documentários de políticos ou pessoas famosas. Trazer o comum para o primeiro plano era um diferencial que tornava o gênero algo especial. Essa é a essência do documentário. Foi nas ruas de Paris, entrevistando pessoas comuns que Jean Rouch e Edgar Morin criaram seu filme marco. E em um hospital prisão, que Frederick Wiseman criou o seu.
Um representante brasileiro legítimo desse tipo de filme é Eduardo Coutinho que já explorou o formato ao extremo. Como ninguém, Coutinho sabe dar voz à pessoa comum, tornando-a especial por alguns segundos. Nunca esqueço uma cena do seu média metragem Boca de lixo, onde ele coloca uma menina filha de uma catadora em frente a sua casa cantando, porque ela disse que o sonho dela era ser cantora. Emoção parecida foi ver um dos moradores do Edifício Master ouvindo Frank Sinatra e acompanhando com emoção a letra de My Way. Esses recursos mostram que não é porque é documentário que tem que ser purista. É um filme e um filme precisa contar uma história. Precisa criar seu protagonista, seus antagonistas, sua trajetória a ser alcançada e sua vitória ou derrota no clímax. Foi isso que Greison percebeu ao assistir o filme de Flaherty. Documentário é filme e filme precisa de roteiro e narrativa.
Como disse Rouch ao ser criticado que não existia cinema verdade, pois ao ligar a câmera a pessoa muda, "Não é a verdade no cinema, mas a verdade do cinema". Isso é o mais importante, porque não dá para saber mesmo o que é real e o que é ficção. Foi isso que Coutinho quis mostrar em seu filme Jogo de Cena. Ao colocar atrizes e mulheres reais na tela dando depoimento, ele mostrou esse jogo de verdade e mentira de uma forma profunda. Afinal, quem somos nós para definir o que ali é verdade ou encenação? Mesmo nas atrizes famosas, o quanto de suas verdades passaram ao declamar o texto? Ou depois, na explicação?
Verdade ou mentira, documentário é gênero cinematográfico. Existem diversas formas de fazê-lo, e alguns padrões que já foram adotados, principalmente pelo costume que passamos a ter de assistir tele-reportagens onde um narrador apresenta o tema, depoimentos são colhidos e alguns inserts ilustram as falas. Isso é apenas um tipo de documentário. E que, sinceramente, é o que acho menos interessante.
*Dedico esse texto ao professor José Serafim, que me passou seus conhecimentos nas três oportunidades que fui sua aluna nas Pós de Roteiro e de Cinema. A fonte para construir esse texto foram as lembranças da aula e meu caderno de anotações.
Foi com Georges Méliès que o cinema ganhou vida, pois tanto Thomas Edison quanto os irmãos Lumière eram cientistas mais preocupados com o invento em si do que com o que fazer com ele. Méliès passou a entreter platéias com suas histórias fictícias e o mundo passou a seguir esse formato. Mas ainda não existia essa idéia de ficção e documentário. Foi em 1926, após assistir Nanook, o Esquimó (Nanook of the North) de Robert J. Flaherty, que John Greison fez a distinção do termo pela primeira vez. Ele resolve, então, criar a escola inglesa de documentário em Londres, onde diversos cineastas aprimoraram o formato. Coincidentemente, essa época foi a mesma em que o som chega aos cinemas, com câmeras de som direto, o formato acaba sendo melhor desenvolvido.
Mas, como nada no cinema é exclusivo, enquanto Greison estava estudando o formato que ele tinha criado em Londres, na Rússia, Dzigar Vertov desenvolvia o seu Cine-Olho. O que mais importava aos russos era a montagem, tanto que Sergei Eisenstein é o maior teórico no assunto até hoje. Vertov foi quem melhor soube por em práticas essas idéias, mas diferente do seu compatriota, ele queria um cinema mais verdadeiro, direto, apenas a relação do olho da câmera vendo o mundo, vide o clássico O homem com a câmera. É bom ressaltar que o cinema de Vertov não é Cinema Direto, nem Cinema Verdade, ele é apenas o precursor dessas duas idéias, inspiração para os movimentos que vieram muito depois. No Cinema Direto deveria-se produzir filmes com a mínima interferência da câmera e um bom representante desse tipo de filme seria Frederick Wiseman com seu incômodo "Titicut Follies" de 1967. Já o Cinema Verdade as pessoas falavam diretamenta para a câmera. Jean Rouch e Edgar Morin apresentaram a idéia com "Crônica de um verão" em 1960.
Bom, mas esse resumo de história foi para analisar um fato interessante. O primeiro documentário, Nanook, tem muito de ficção. Robert J. Flaherty era um explorador, um geólogo. Foi ao extremo norte explorar e conhecer a civilização local. Resolveu levar uma câmera junto. Voltou, apresentou seu projeto e poucos se interessaram. Por sorte, o filme pegou fogo. Flaherty resolveu voltar então, ao norte para refazer o filme perdido. Muita coisa teve que ser refeita de forma falsa, ensaiada. Algumas foram manipuladas para deixar Nanook mais selvagem. Por exemplo, os esquimós já usaram arma de fogo, mas Flaherty fez Nanook caçar com uma lança. A própria cena inicial com a família saindo da canoa já demonstra que há montagem.
Mas, isso não importava tanto, pois, como já foi dito não existia o termo documentário, quanto mais as regras. O que chamou a atenção no filme de Flaherty foi o fato de contar a história de uma pessoa real e comum. O ser comum não tinha voz no cinema, eram feitos documentários de políticos ou pessoas famosas. Trazer o comum para o primeiro plano era um diferencial que tornava o gênero algo especial. Essa é a essência do documentário. Foi nas ruas de Paris, entrevistando pessoas comuns que Jean Rouch e Edgar Morin criaram seu filme marco. E em um hospital prisão, que Frederick Wiseman criou o seu.
Um representante brasileiro legítimo desse tipo de filme é Eduardo Coutinho que já explorou o formato ao extremo. Como ninguém, Coutinho sabe dar voz à pessoa comum, tornando-a especial por alguns segundos. Nunca esqueço uma cena do seu média metragem Boca de lixo, onde ele coloca uma menina filha de uma catadora em frente a sua casa cantando, porque ela disse que o sonho dela era ser cantora. Emoção parecida foi ver um dos moradores do Edifício Master ouvindo Frank Sinatra e acompanhando com emoção a letra de My Way. Esses recursos mostram que não é porque é documentário que tem que ser purista. É um filme e um filme precisa contar uma história. Precisa criar seu protagonista, seus antagonistas, sua trajetória a ser alcançada e sua vitória ou derrota no clímax. Foi isso que Greison percebeu ao assistir o filme de Flaherty. Documentário é filme e filme precisa de roteiro e narrativa.
Como disse Rouch ao ser criticado que não existia cinema verdade, pois ao ligar a câmera a pessoa muda, "Não é a verdade no cinema, mas a verdade do cinema". Isso é o mais importante, porque não dá para saber mesmo o que é real e o que é ficção. Foi isso que Coutinho quis mostrar em seu filme Jogo de Cena. Ao colocar atrizes e mulheres reais na tela dando depoimento, ele mostrou esse jogo de verdade e mentira de uma forma profunda. Afinal, quem somos nós para definir o que ali é verdade ou encenação? Mesmo nas atrizes famosas, o quanto de suas verdades passaram ao declamar o texto? Ou depois, na explicação?
Verdade ou mentira, documentário é gênero cinematográfico. Existem diversas formas de fazê-lo, e alguns padrões que já foram adotados, principalmente pelo costume que passamos a ter de assistir tele-reportagens onde um narrador apresenta o tema, depoimentos são colhidos e alguns inserts ilustram as falas. Isso é apenas um tipo de documentário. E que, sinceramente, é o que acho menos interessante.
*Dedico esse texto ao professor José Serafim, que me passou seus conhecimentos nas três oportunidades que fui sua aluna nas Pós de Roteiro e de Cinema. A fonte para construir esse texto foram as lembranças da aula e meu caderno de anotações.
Amanda Aouad
Crítica afiliada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), é doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Poscom / UFBA) e especialista em Cinema pela UCSal. Roteirista profissional desde 2005, é co-criadora do projeto A Guardiã, além da equipe do Núcleo Anima Bahia sendo roteirista de séries como "Turma da Harmonia", "Bill, o Touro" e "Tadinha". É ainda professora dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unifacs e da Uniceusa. Atualmente, faz parte da diretoria da Abraccine como secretária geral.
Documentário é filme
2011-01-30T09:20:00-03:00
Amanda Aouad
Historia do cinema|materias|
Assinar:
Postar comentários (Atom)
cadastre-se
Inscreva seu email aqui e acompanhe
os filmes do cinema com a gente:
os filmes do cinema com a gente:
No Cinema podcast
anteriores deste site
mais populares do site
-
E na nossa cobertura do FICI - Festival Internacional de Cinema Infantil , mais uma vez pudemos conferir uma sessão de dublagem ao vivo . Ou...
-
Terra Estrangeira , filme de 1995 dirigido por Walter Salles e Daniela Thomas , é um dos filmes mais emblemáticos da retomada do cinema b...
-
Raquel Pacheco seria apenas mais uma mulher brasileira a exercer a profissão mais antiga do mundo se não tivesse tido uma ideia, na época i...
-
“Testemunha ocular da História”, esse slogan de um famoso radiojornal brasileiro traduz bem o papel da imprensa no mundo. Um fotojornalista...
-
Para prestigiar o Oscar de Natalie Portman vamos falar de outro papel que lhe rendeu um Globo de Ouro e uma indicação ao Oscar em 2004. Clos...
-
Entre os dias 24 e 28 de julho, Salvador respira cinema com a sétima edição da Mostra Lugar de Mulher é no Cinema. E nessa edição, a propost...
-
Quando Twister chegou às telas em 1996, trouxe consigo um turbilhão de expectativas e adrenalina. Sob a direção de Jan de Bont , conhecido ...
-
Lucky Luke (2009) é uma adaptação cinematográfica de um ícone dos quadrinhos franco-belgas que há décadas encanta os leitores com suas ave...
-
Os Fantasmas Se Divertem (1988), dirigido por Tim Burton , é um marco do cinema que mescla comédia e horror de maneira original. Este fi...