Nós
Quem somos nós? Ou melhor o que somos nós? Após impactar o mundo com Corra, Jordan Peele traz um filme que instiga, perturba e encanta em diversos níveis. É difícil falar de Nós sem dar spoilers, mas refletir sobre a experiência é sempre um desafio encantador.
Adelaide teve uma perturbadora experiência na infância e isso de alguma forma marca sua postura diante da vida. Há sempre nela uma sensação de insegurança e perigo iminente. Até que em uma noite, esse medo se justifica com a chegada de estranhos visitantes à porta de sua casa.
Tecnicamente, uma coisa que encanta na direção de Peele é a sutileza com que ele constrói o suspense. A partir de uma mise-en-scène bem arquitetada vai construindo a sensação de estranhamento e nos causando angústias com coisas aparentemente normais, como a dinâmica de um parque de diversões, mas que, pelo olhar de uma garotinha com sua maçã do amor na mão, se torna assustador. Basta dizer que o ponto de ataque da curva de tensão da obra começa com a frase “tem uma família na porta”.
O ser humano tem medo do desconhecido. É natural em filmes de terror termos uma construção de efeitos que dosa o que mostra e o que esconde do espectador. Mas o que impressiona em Nós é que o estranhamento tem relação não totalmente com o desconhecido, mas com o encontro consigo mesmo. Ou pelo menos com seu espelho. E tudo de assustador que pode vir com o ato de encarar isso.
Tememos a nós mesmos, o que queremos esconder, as nossas sombras. É com isso que Peele lida em sua narrativa através de camadas e simbologias que vão desde as questões individuais às coletivas. Estamos doentes enquanto sociedade, principalmente nos últimos anos onde a humanidade parece estar regredindo em muitas atitudes coletivas de violência e intolerância. Por isso, um dos símbolos utilizados é uma placa com um versículo da Bíblia: Jeremias 11:11. Nela, Deus, decepcionado com as atitudes dos hebreus após o exôdo diz: “Trarei sobre eles uma desgraça da qual não poderão escapar. Ainda que venham a clamar a mim, eu não os ouvirei”.
Há simbologias no versículo que dialogam com os elementos que a obra trabalha através da tensão entre povos privilegiados e excluídos. O que fazem com seus privilégios? Como é possível lutar contra a situação de excluído? O que os privilegiados pensam e como agem em relação aos excluídos e vice-versa? Existe meritocracia? Até que ponto o meio interfere em nosso destino e naquilo que conseguimos em nossa vida? Tudo nos é evocado em diversas camadas no decorrer da trama e que reverbera em nossa mente mesmo depois dela.
Chama a atenção a maneira como o filme trabalha seus elementos, estimulando a reflexão mesmo nas cenas mais tensas com as mais diversas associações como a utilização das músicas Good Vibrations ou Fuck the police, por exemplo. Ou uma situação extremamente simbólica que evoca o movimento “de mãos dadas pela América” e traz outras perspectivas para os acontecimentos vistos até então.
No final, Nós é uma obra extremamente rica que nos faz refletir durante e após sua projeção sem deixar de lado o programa de efeito do terror. Destaque ainda para a interpretação de Lupita Nyong'o que trabalha a protagonista e seu duplo com uma sutileza impressionante, principalmente após compreendermos toda a narrativa. Entre técnica e estética, um filme para ficar conosco por muito tempo.
Nós (Us, 2019 / EUA)
Direção: Jordan Peele
Roteiro: Jordan Peele
Com: Lupita Nyong'o, Winston Duke, Elisabeth Moss, Tim Heidecker
Duração: 116 min.
Amanda Aouad
Crítica afiliada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), é doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas (Poscom / UFBA) e especialista em Cinema pela UCSal. Roteirista profissional desde 2005, é co-criadora do projeto A Guardiã, além da equipe do Núcleo Anima Bahia sendo roteirista de séries como "Turma da Harmonia", "Bill, o Touro" e "Tadinha". É ainda professora dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Unifacs e da Uniceusa. Atualmente, faz parte da diretoria da Abraccine como secretária geral.
Nós
2019-04-16T08:30:00-03:00
Amanda Aouad
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